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Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024

«Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021

Sumário: Aprova a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024.

O XXII Governo Constitucional inscreveu no seu programa, entre os objetivos prioritários, o combate à corrupção e à fraude, ciente de que estes fenómenos minam a confiança dos cidadãos nas suas instituições, fragilizam a economia pelo aumento dos custos de contexto, debilitam as finanças do Estado, provocam a erosão dos alicerces do Estado social e acentuam as desigualdades.

O combate à corrupção é essencial ao reforço da qualidade da democracia e à plena realização do Estado de Direito, assegurando uma efetiva igualdade de oportunidades, promovendo maior justiça social, favorecendo o crescimento económico, robustecendo as finanças públicas e aumentando o nível de confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.

Muitas foram as medidas tomadas ao longo dos últimos 30 anos, nos planos legislativo, organizativo e gestionário para prevenir e reprimir a corrupção e a fraude.

Desde logo, Portugal subscreveu e integrou na sua ordem jurídica os instrumentos internacionais em matéria de prevenção e repressão da corrupção e do branqueamento de capitais produzidos no seio das organizações internacionais de que faz parte.

Encontra-se igualmente em vigor, desde 1994, legislação específica que permite a realização de ações de prevenção relativamente a crimes de corrupção, peculato, participação económica em negócio, fraudes e infrações económico-financeiras com dimensão transnacional, internacional ou praticadas de forma organizada.

A criação, em 1997, do Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República visou essencialmente dar resposta às específicas necessidades de apoio à investigação deste tipo de criminalidade.

O Ministério Público está também, desde 1998, dotado de unidades vocacionadas para a direção da investigação deste tipo de criminalidade (Departamento Central de Investigação e Ação Penal e secções de departamentos de investigação e ação penal). A Polícia Judiciária, o órgão de polícia criminal com competência reservada para a sua investigação, incorpora na sua estrutura orgânica uma unidade nacional especializada.

Por outro lado, nota-se que, em 2002, Portugal esteve na primeira linha na instituição do regime de perda alargada de bens relativamente às infrações económico-financeiras e instituiu ainda um regime especial de quebra de segredo por parte das competentes autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal na investigação de crimes de corrupção e criminalidade conexa, favorecendo o acesso à informação bancária e financeira.

No mesmo ano obteve consagração legal o registo de voz e imagem sem o consentimento do visado no âmbito da investigação desses crimes.

Em 2008, foi criado o Conselho de Prevenção da Corrupção com a missão desenvolver atividades no domínio da prevenção da corrupção e infrações conexas.

Porém, a constatação de que só uma visão de longo prazo, congregadora de esforços e geradora de dinâmicas ao nível dos diferentes poderes do Estado, das distintas áreas de governação e dos setores privado e social terá capacidade para enfrentar coerente e consistentemente este fenómeno, determinou a necessidade de conceção de uma Estratégia Nacional Anticorrupção (Estratégia).

Assumindo a dimensão preventiva como crucial, a Estratégia identifica prioridades e prevê um conjunto de ações, articuladas e integradas, tendentes a permitir ao Estado agir a montante do fenómeno – formando cidadãos probos e cientes dos seus direitos, melhorando a capacidade de resposta da Administração e os mecanismos de transparência na ação pública, ativando mecanismos de identificação precoce de riscos de fraude e corrupção, prevenindo a gestação de contextos geradores de práticas corruptivas -, assim reduzindo o espaço de necessidade de reação penal, entendida como última ratio.

Às medidas direcionadas para o aumento da transparência e da responsabilização nas dimensões política, administrativa e no setor privado, e para a melhoria da qualidade da informação, a Estratégia adita, na perspetiva da melhoria da resposta global aos fenómenos corruptivos, a componente da investigação criminal, visando melhorar as condições para que as investigações se realizem em tempo razoável e garantir a efetividade da punição.

Aprovada na generalidade uma primeira versão da Estratégia, o documento foi submetido a consulta pública até 20 de outubro de 2020, da qual resultaram importantes contributos de cidadãos em nome individual, de associações cívicas, de ordens profissionais, de associações sindicais e empresariais, de magistrados e de advogados. A Estratégia esteve também no centro de debates e conferências.

Consolidado o documento, importa aprovar a sua versão final e concretizar as medidas nele previstas, nomeadamente com a apresentação à Assembleia da República das correspondentes propostas legislativas.

Assim:

Nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

1 – Aprovar a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, constante do anexo à presente resolução e que dela faz parte integrante.

2 – Estabelecer que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Presidência do Conselho de Ministros, 18 de março de 2021. – O Primeiro-Ministro, António Luís Santos da Costa.

ANEXO

(a que se refere o n.º 1)

Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024

Introdução

O programa do XXII Governo Constitucional inscreve entre os seus objetivos fundamentais o combate ao fenómeno da corrupção, tornando a ação do Estado mais transparente e justa, promovendo a igualdade de tratamento entre os cidadãos e fomentando o crescimento económico.

O combate à corrupção é essencial para o reforço da qualidade da democracia e para a plena realização do Estado de Direito e deve ser realizado de forma holística e ponderada.

Considera-se fundamental, para uma boa estratégia de combate à corrupção, atuar a montante do fenómeno, prevenindo a existência de contextos geradores de práticas corruptivas.

Elegendo a prevenção como vetor essencial ao enfrentamento deste fenómeno, o Governo comprometeu-se, designadamente, a instituir um relatório nacional anticorrupção, a avaliar a permeabilidade das leis aos riscos de fraude, a diminuir as obscuridades legais e a carga burocrática, a obrigar as entidades administrativas a aderir a um código de conduta ou a adotar códigos de conduta próprios, a dotar algumas entidades administrativas de um departamento de controlo interno que assegure a transparência e imparcialidade dos procedimentos e decisões, a melhorar os processos de contratação pública, e a obrigar as médias e grandes empresas a disporem de planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas.

A realização dos objetivos e a satisfação dos compromissos assumidos pelo Governo, no seu programa, pressupõem uma atividade de conceção, planeamento e execução que requer a participação de diferentes entidades e profissionais, em mobilização de diversos saberes teóricos e práticos.

Neste contexto, considerou-se necessário criar, na dependência direta da Ministra da Justiça, um grupo de trabalho para a definição de uma estratégia anticorrupção nacional, global e integrada, que compreendesse os momentos da prevenção, da deteção e da repressão do fenómeno corruptivo.

Tal grupo de trabalho, dirigido por uma académica e integrando magistrados, investigadores da Polícia Judiciária (PJ), representantes do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), o inspetor-geral dos Serviços de Justiça e técnicos do Ministério da Justiça (do Gabinete Ministerial e da Direção-Geral de Política de Justiça), foi criado por despacho dos membros do Governo das áreas das finanças e da justiça, de 21 de fevereiro de 2020, tendo apresentado o resultado da sua atividade em 17 de julho de 2020.

No processo de elaboração da estratégia, foram ouvidos representantes da Ordem dos Advogados, da Ordem dos Notários, da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, da Associação Transparência e Integridade, do Fórum Penal e do Observatório de Economia e Gestão da Fraude.

Alguns dos contributos prestados durante estas audições foram integrados no documento final da estratégia apresentado à Ministra da Justiça pelo grupo de trabalho.

A partir do documento apresentado pelo grupo de trabalho, foi elaborada, pelo Ministério da Justiça, a versão inicial da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024 (Estratégia), a qual foi aprovada em Conselho de Ministros, no dia 3 de setembro de 2020.

Seguiu-se um período de consulta pública que terminou no dia 20 de outubro de 2020.

O cuidado em abrir o debate a vários especialistas, associações profissionais e público em geral teve por base a ideia de que os níveis de corrupção só podem descer se se atuar ao nível da prevenção, deteção e repressão destes comportamentos, envolvendo e comprometendo toda a sociedade, através das suas instituições, organizações públicas e privadas e cidadãos.

Findo o prazo estabelecido para a entrega de contributos, foi possível verificar, numa verdadeira demonstração de preocupação e comprometimento cívicos – que, por si só, justificou plenamente a opção de submeter o documento a escrutínio público -, a participação interessada, ponderada e dedicada de diversos cidadãos e organizações, concretizada através da plataforma ConsultaLEX, da imprensa ou diretamente junto do Ministério da Justiça.

Foram submetidas reflexões e contributos por associações e grupos de magistrados e advogados, por associações cívicas, empresariais e ordens profissionais, destacando-se a Ordem dos Psicólogos Portugueses, a Ordem dos Advogados, a Associação Transparência e Integridade, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a Confederação Empresarial de Portugal (CIP), a Associação Empresarial de Portugal (AEP) e a Delegação Nacional Portuguesa da Câmara de Comércio Internacional, e ainda por académicos, magistrados, jornalistas e cidadãos em nome individual.

Sumário executivo

(ver documento original)

O problema

O que é a corrupção?

Não existe uma definição de corrupção comum a todos os países. No entanto, é consensual que numa conduta corruptiva se verifica o abuso de um poder ou função públicos de forma a beneficiar um terceiro, contra o pagamento de uma quantia ou outro tipo de vantagem.

O Código Penal Português prevê, nos artigos 372.º a 374.º-B, os crimes de recebimento indevido de vantagem e os crimes de corrupção. Os crimes de corrupção apresentam-se, essencialmente, com duas configurações: a corrupção ativa e a corrupção passiva, conforme o agente esteja, respetivamente, a oferecer/prometer ou a solicitar/aceitar uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, distinguindo-se ainda, cada uma, conforme o ato solicitado ou a praticar seja ou não contrário aos deveres do cargo do funcionário corrompido.

Integram também o conceito criminal de corrupção, ainda que inexista abuso de um poder ou função públicos, os crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada, previstos na Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, na sua redação atual, e os previstos no Regime de Responsabilidade Penal por Comportamentos Antidesportivos, aprovado pela Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, na sua redação atual.

No entanto, o conceito de corrupção alcança na sociedade um sentido mais abrangente, abarcando outras condutas, também criminalizadas, cometidas no exercício de funções públicas, como o peculato, a participação económica em negócio, a concussão, o abuso de poder, a prevaricação, o tráfico de influência ou o branqueamento.

Numa perspetiva mais social e menos jurídica do fenómeno, a organização não governamental Transparência Internacional define a corrupção como «o abuso de um poder confiado para ganhos privados».

Os fenómenos corruptivos, nas suas diferentes configurações, atentam contra princípios fundamentais do Estado de direito, enfraquecem a credibilidade e a confiança dos cidadãos nas instituições e comprometem o desenvolvimento social e económico, fomentando a desigualdade, reduzindo os níveis de investimento, dificultando o correto funcionamento da economia e fragilizando as finanças públicas.

Esses fenómenos atingem o coração da democracia, ferindo-a nos seus princípios fundamentais, nomeadamente os da igualdade, transparência, integridade, livre iniciativa económica, imparcialidade, legalidade e justa redistribuição da riqueza.

Têm efeitos económicos profundamente nocivos, como o aumento da despesa pública, por realização de intervenções desprovidas de real interesse, em benefício de privados, a retração dos investidores ou a distorção das regras da concorrência.

Ao traírem as normas do correto funcionamento do Estado os fenómenos corruptivos provocam a erosão das regras de boa governança e degradam inevitavelmente a relação entre governantes e governados.

A perceção da existência de fenómenos de corrupção fez nascer e crescer na opinião pública – alimentada por sentimentos de frustração ou por pulsões antidemocráticas – a ideia de que todo o exercício de atividade política pressupõe a intenção de aproveitamento da coisa pública para fins privados. Em suma, a ausência de compromisso com o bem comum.

Esta perceção favorece a perda de confiança nos valores da democracia e fragiliza as instituições representativas dos poderes do Estado.

A prevenção, a deteção e a repressão da corrupção têm sido erigidos por diferentes instâncias internacionais como objetivos nucleares da sua intervenção, considerando a dimensão global do fenómeno e os seus reflexos no plano do desenvolvimento sustentado.

(ver documento original)

O enquadramento presente…

Portugal subscreveu e tem em vigor, na ordem jurídica interna, os instrumentos normativos produzidos pelas organizações internacionais de que faz parte, que têm como objeto a prevenção e a repressão da corrupção e do branqueamento de capitais.

No plano estritamente interno, para prevenir, detetar e reprimir a prática de atos corruptivos e tornar mais eficaz o seu combate, Portugal foi adotando, progressivamente, ampla legislação penal, processual penal e regulatória em diversas áreas potencialmente criadoras de riscos de corrupção.

Dispõe, há mais de uma década, de legislação específica em matéria de meios de obtenção da prova e de acesso à informação, no que se refere à investigação criminal, assim como em matéria de perda alargada de bens, quando se verifique que o valor do património do agente do crime não é congruente com o seu rendimento lícito(1).

Tem em vigor, desde 1994, legislação que permite a realização pelo Ministério Público e pela PJ de ações de prevenção relativamente a crimes de corrupção, peculato, participação económica em negócio, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito e a infrações económico-financeiras com dimensão transnacional, internacional ou cometidas de forma organizada(2).

Instituiu e tem a funcionar, desde 1997, o Núcleo de Assessoria Técnica na Procuradoria-Geral da República (PGR), com funções de assessoria e consultoria técnica em matéria económica, financeira, bancária, contabilística e de mercado de valores mobiliários(3). A PJ dispunha já, desde 1977, de uma unidade vocacionada para a realização de perícias em matéria económico-financeira – a hoje denominada Unidade de Perícia Financeira e Contabilística (UPFC).

Instalou na PJ uma unidade de informação financeira (UIF) que tem como competências específicas a recolha, centralização, tratamento e difusão, no plano nacional, da informação respeitante à prevenção e investigação dos crimes de branqueamento de vantagens de proveniência ilícita, de financiamento do terrorismo e tributários. A UIF assegura ainda, no plano interno, a cooperação e articulação com as autoridades judiciárias, com as autoridades de supervisão e de fiscalização e com as entidades financeiras e não financeiras, previstas na Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, na sua redação atual; e, no plano internacional, a cooperação com as unidades de informação financeira ou estruturas congéneres.

Em 2008 instalou o CPC, entidade administrativa independente para desenvolver atividades no domínio da prevenção da corrupção e infrações conexas(4).

Criou, em 2011, na dependência da PJ, um Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), com uma composição multidisciplinar – envolvendo a PJ, o Instituto de Registos e do Notariado, I. P., e a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) – tendo como missão proceder à investigação financeira e patrimonial tendente à identificação e localização, com vista à apreensão, de bens provenientes da prática de crimes geradores de proventos económicos(5).

No plano organizativo-operacional, dotou o Ministério Público de unidades vocacionadas para a direção da investigação deste tipo de criminalidade [Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e secções especializadas de departamentos de investigação e ação penal] e autonomizou, na estrutura orgânica da PJ, uma unidade nacional especializada, com competência reservada na matéria – Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC).

As autoridades judiciárias e, em particular, o Ministério Público têm acesso direto e em linha a um relevante conjunto de informações disponíveis em bases de dados da Administração, como as da identificação civil e criminal, da administração tributária, dos registos comercial, predial e automóvel ou do registo central do beneficiário efetivo.

A UIF e o DCIAP, no âmbito das suas atribuições no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, têm ainda acesso, de forma imediata e não filtrada, à base de dados de contas do Banco de Portugal.

Mais recentemente, foi reforçada a capacidade de obtenção da prova em ambiente digital, com a instalação e o apetrechamento da unidade da PJ vocacionada para investigar a criminalidade informática e em ambiente informático.

Foi também melhorada a atividade de Recuperação de Ativos decorrentes do crime, simplificando-se procedimentos e rentabilizando-se a administração e gestão dos bens apreendidos.

No domínio da prevenção, não se pode deixar de reconhecer a promoção da adoção de planos de gestão de riscos de corrupção e a sua monitorização, havendo hoje um número muito expressivo de órgãos e estruturas da Administração que os adota e atualiza regularmente. O CPC tem desenvolvido um papel decisivo na conceção e atualização dos planos.

No final da última legislatura foi aprovado, em sede parlamentar, um extenso conjunto de medidas com o objetivo de reforçar a transparência e a assegurar elevados níveis de integridade no exercício de cargos políticos e de funções públicas.

Persiste, contudo, no conjunto de certezas sociais adquiridas, a convicção de que:

a) Os fenómenos corruptivos são sistémicos e atravessam amplos setores da atividade política, administrativa e privada;

b) O Estado, através das suas instâncias de controlo, não tem conseguido prevenir, detetar e reprimir eficazmente a corrupção.

E a verdade é que estão, há muito, constatadas dificuldades no conhecimento da extensão real do fenómeno e do nível de incidência nas diferentes áreas de atividade, quer públicas, quer privadas.

Inexiste também, em rigor, um sistema que permita a avaliação efetiva do grau de eficiência e da capacidade de resposta das várias instituições já envolvidas na prevenção e repressão da corrupção.

Os dados disponibilizados pela PGR e pela Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) – entidade que no conjunto do sistema tem por missão produzir a informação destinada às estatísticas oficiais da justiça – revelam insuficiências e, por vezes, incongruências.

Tudo significando que, apesar das sucessivas intervenções feitas, tanto no plano normativo como nas dimensões de organização e de meios, continua patente a ausência de uma linha de ação coordenada, coerente e consistente que envolva as dimensões preventiva e repressiva e potencie as sinergias resultantes da atividade das diversas instituições, cujo objetivo seja o enfrentamento da corrupção, assegurando igualmente um melhor conhecimento e aproveitamento dos meios disponíveis, assim como a produção de informação quantificada, qualificada e atualizada, que preencha as necessidades de conhecimento e caracterização do fenómeno, salvaguardando também as exigências de reporte a que o país está vinculado.

Em suma, continua patente a necessidade de uma ação transformadora capaz de gerar uma sociedade hostil à corrupção e capacitada para a enfrentar com efetividade.

(ver documento original)

O caminho

Assumindo o princípio de que a intervenção penal se deve prefigurar como última ratio e que a capacidade repressiva do Estado nunca será suficiente se não houver uma intervenção a montante que enfrente as raízes do problema, a Estratégia centra-se essencialmente na prevenção dos fenómenos corruptivos.

A educação, o ensino superior e as estruturas de governo da Administração Pública são chamados a assumir a função de garante da aquisição de competências pessoais e de ferramentas institucionais que neutralizem a possibilidade de reprodução dos ambientes em que medram as práticas corruptivas.

O setor empresarial é também convocado para participar neste esforço conjunto.

A criação de um regime geral de prevenção da corrupção, envolvendo obrigações para os setores público e privado e estabelecendo consequências para o incumprimento, é a resposta identificada para assegurar a efetividade da prevenção.

A implementação desse regime, as necessidades de recolha, tratamento e a difusão periódica de informação convergem no sentido da criação de um Mecanismo de Prevenção da Corrupção e da Criminalidade Conexa.

Na dimensão repressiva, para além da utilidade de congregar, em documento único, as sucessivas intervenções legislativas avulsas, de alcance processual, identifica-se a necessidade de ajustamentos incidindo, entre outros, sobre a conexão de processos, o regime da atenuação e dispensa de pena, a otimização dos efeitos da confissão integral e sem reservas e a responsabilidade penal das pessoas coletivas.

Corrupção – Dados e cifras

1 – Dados recolhidos e analisados pela PGR, relativos a 2019, dão nota do registo de 2155 novos inquéritos por crimes de corrupção e afins (fenómeno que abarca crimes de corrupção ativa e passiva, tráfico de influência, apropriação ilegítima de bens públicos, administração danosa, peculato, participação económica em negócio e abuso de poder), correspondendo este número a uma diminuição com pouco significado estatístico face a 2018, ano em que foram registados 2586 inquéritos. Pela prática destes crimes, foram deduzidas 170 acusações, suspensos provisoriamente 33 processos e arquivados 1152 inquéritos.

No mesmo período foram registados 204 novos inquéritos para investigação do crime de branqueamento, o que constituiu uma diminuição por referência a 2018 (387) e a 2017 (494). Foram, quanto a este tipo de crime, deduzidas 49 acusações e proferidos 61 despachos de arquivamento.

Pese embora a circunstância de não se estabelecer, comummente, uma associação entre a espionagem e a corrupção a verdade é que aquele crime, quando praticado por agente público, tendo por objeto matérias relativas à sua atividade funcional e envolvendo contrapartidas económicas, tem também, no seu cerne, a quebra da integridade e da probidade do funcionário.

Está identificado um conjunto de crimes, com destaque para o tráfico de pessoas e o auxílio à imigração ilegal, cuja prática é amplamente facilitada por redes de corrupção.

A posição geoestratégica de Portugal, a sua história, o seu papel de porta da Europa e de interlocutor privilegiado da Europa com outros continentes, a sua inscrição no espaço da União Europeia e em organizações internacionais críticas em matéria de ciência, de segurança e de defesa, implicam riscos específicos para o País, não dissociáveis dos fenómenos corruptivos.

2 – O Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), na última avaliação feita a Portugal, em 2017, considerou que o País tem um sistema de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo robusto, em consequência do que Portugal ficou sujeito ao processo de «acompanhamento regular» (processo de acompanhamento e monitorização de intensidade mais baixa).

O 1.º Ciclo de Avaliações Mútuas do Grupo de Estados contra a Corrupção do Conselho da Europa (GRECO) foi lançado no ano de 2000 e versou sobre a independência, especialização e os meios disponíveis para organismos nacionais responsáveis pela prevenção e luta contra a corrupção; o 2.º Ciclo de Avaliações Mútuas, iniciado em 2003, incidiu sobre a identificação, apreensão e perda dos proventos de corrupção, sistemas de auditoria e conflitos de interesse na Administração Pública, prevenção do uso de pessoas coletivas como instrumentos para a corrupção, legislação fiscal e financeira para combater a corrupção, criminalidade organizada e branqueamento de capitais; o 3.º Ciclo de Avaliação Mútuas, desencadeado em 2007, versou sobre a criminalização da corrupção e a transparência no financiamento de partidos políticos; o 4.º Ciclo de Avaliações Mútuas, iniciado no final de 2012 e até há pouco tempo em curso, incidiu sobre a prevenção da corrupção em relação a membros dos parlamentos, juízes e magistrados do Ministério Público; o 5.º Ciclo de Avaliações Mútuas, lançado em março de 2017, atualmente a decorrer, incide sobre as autoridades que exercem funções executivas e as agências de cumprimento da lei.

Portugal terminou com sucesso a implementação das recomendações emitidas no âmbito do 3.º Ciclo e foi objeto de avaliação no âmbito do 4.º ciclo de avaliações mútuas em dezembro de 2015. Em dezembro de 2017, o GRECO elaborou um Primeiro Relatório de Conformidade de Portugal com as Recomendações contidas no Relatório de Avaliação e, mais recentemente, um Relatório Intercalar de Conformidade, em junho de 2019. No último exercício de implementação, em junho de 2019, Portugal conseguiu melhorar o resultado de cinco recomendações que passaram de não implementadas para parcialmente implementadas.

Em 2018 e 2019, Portugal ficou em 30.º lugar no Índice de Perceção da Corrupção (CPI) da organização não governamental Transparência Internacional, tendo em 2020 ocupado o 33.º lugar, num quadro de 180 países. No ano de 2020, a Dinamarca e a Nova Zelândia ficaram, ex aequo, classificadas em primeiro lugar.

3 – A corrupção pode ter impactos financeiros diretos nas contas do Estado, impedindo que o valor correspondente à despesa adicional ou à receita por cobrar seja canalizado para a saúde, a segurança social, a educação, a segurança, a justiça, a cultura ou para a modernização da Administração Pública, pondo em causa, consequentemente, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais que incumbe ao Estado garantir.

A inexistência de dados fiáveis sobre as manifestações de fenómenos corruptivos e, bem assim, de uma estrutura responsável pelo seu tratamento torna difícil o exercício de quantificação dos custos da corrupção a nível nacional. É, no entanto, certo que a corrupção tem custos financeiros que fragilizam a capacidade de ação do Estado.

(ver documento original)

Visão

Não obstante os esforços que têm vindo a ser realizados por Portugal na luta contra o fenómeno corruptivo, as características deste exigem ainda uma abordagem especializada, pluridisciplinar, integrada e articulada entre os diversos órgãos e entidades envolvidos na prevenção, deteção e repressão da corrupção.

Tal abordagem deve envolver e corresponsabilizar instituições do Estado, cidadãos, empresas e instituições da sociedade civil na prevenção pelo conhecimento, pela formação e pela informação, articulada com uma dinâmica repressiva atual, tempestiva e efetiva.

Numa perspetiva sistémica, serão convocados para a intervenção pressuposta nesta estratégia o aparelho legislativo, o sistema educativo, o setor privado, a Administração Pública, no seu conjunto, e, de modo particular, os órgãos com funções específicas de prevenção da corrupção, aqui se incluindo as inspeções-gerais e entidades equiparadas e inspeções regionais, assim como, na dimensão mais repressiva, o sistema judiciário.

O grande desígnio consiste em transformar, reforçando os valores da cidadania nas suas várias dimensões; criando instituições transparentes, acessíveis e respeitadas pelos cidadãos; melhorando a capacidade financeira do Estado, a sua capacidade de gestão e controlo dos dinheiros públicos e alterando a perceção interna e externa em matéria de permeabilidade das instituições nacionais à corrupção e à fraude.

A estratégia prossegue, no longo prazo, os objetivos que se passa a sintetizar:

A promoção da transparência e da integridade como valores comuns, integrantes de uma cultura partilhada por todos os cidadãos;

O fortalecimento das instituições públicas e da confiança que os cidadãos nelas devem depositar;

O fomento e a garantia de existência de igualdade de tratamento e de oportunidades para todos os cidadãos;

A melhoria da saúde das finanças públicas, do ambiente de negócios e do desempenho da economia;

O reforço da segurança interna quanto a ameaças externas.

(ver documento original)

Prioridades

Considerando os principais riscos e os obstáculos mais fortes ao enfrentamento eficaz dos fenómenos corruptivos, identifica-se como prioridades:

1 – Melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade.

2 – Prevenir e detetar os riscos de corrupção na ação pública.

3 – Comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da corrupção.

4 – Reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas.

5 – Garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção, melhorar os tempos de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição.

6 – Produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção.

7 – Cooperar no plano internacional no combate à corrupção.

Prioridades

Melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade

1 – Educar para a cidadania – a importância da Escola

Se formos capazes de incutir às nossas crianças e jovens o sentido da integridade aumentaremos as nossas probabilidades de êxito no enfrentamento da corrupção.

A corrupção e os fenómenos criminais que lhe são conexos têm raízes históricas e culturais profundas. A sua persistência na sociedade portuguesa é facilitada por um aparelho burocrático ainda pesado e opaco, pela existência de agentes públicos com fraca adesão a padrões de probidade e alimentada pela fragilidade dos sentimentos de autocensura daqueles que não hesitam em procurar obter vantagens que lhes não são devidas e que, por vezes, se atrevem mesmo a vangloriar-se da sua capacidade de pagar o preço e competência para contornar as regras.

A verdade é que se verifica, nesta matéria, a ausência de uma dimensão robusta de educação formal. De educação para a igualdade. De educação para a integridade e a probidade. A escola tem aqui um papel crucial, incutindo às crianças e aos jovens uma ética de cidadania que gere sentimentos de repúdio em relação a este tipo de práticas.

A aposta na formação precoce assume, pois, uma dimensão de urgência se queremos construir um tecido social dotado de sentido crítico e de uma perceção clara do fenómeno, no seu significado de violação de princípios fundamentais da democracia e nos seus efeitos nos planos social, económico, cultural e até mesmo reputacional do País.

O CPC tem desenvolvido sucessivas iniciativas em ambiente escolar, através da criação de diversos projetos educativos para todos os ciclos do ensino básico e secundário. São exemplo de tais projetos o «Imagens contra a corrupção» (já na 8.ª edição) e o «Mais vale prevenir» (na 2.ª edição).

Mas importa ir mais longe, assegurando a criação de um programa sustentado para o ensino básico e secundário, ajustado a cada ciclo, que concretize a centralidade que esta temática justifica, de harmonia com o disposto no Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, que estabelece os princípios orientadores da conceção do currículo para esses ciclos de ensino. Considerando a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, importa assegurar, concretamente, que a matéria seja integrada nos domínios de Educação para a Cidadania e trabalhada por todos os alunos na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, no âmbito do 1.º grupo, devendo ser produzidos, para o efeito, documentos que possam constituir-se como referenciais para as escolas.

As universidades e politécnicos, sem prejuízo da sua autonomia científica e pedagógica, não deverão deixar também de assumir um papel relevante no plano de prevenção da corrupção, oferecendo unidades curriculares ou segmentos de unidades curriculares dedicados à matéria, mesmo no âmbito de cursos não diretamente ligados ao tema, podendo ser avaliado, em função do curso e até mesmo das saídas profissionais que proporcione, o enfoque a dar à formação.

Uma instituição como a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P., a agência pública nacional para a ciência, tecnologia e inovação, deverá promover, em conjunto com outras entidades, programas de investigação e desenvolvimento sobre a prevenção, deteção e repressão da corrupção, de natureza interdisciplinar e orientados para estimular a investigação científica nesse domínio (abrangendo, por exemplo, a conceptualização e utilização de sistemas avançados de processamento de informação e de ciência dos dados, incluindo metodologias de inteligência artificial). A abertura de concursos para estudos dedicados a esta temática ou a criação de bolsas constituem estímulos que permitirão aprofundar o interesse pela investigação e melhorar o conhecimento do fenómeno nas suas diversas dimensões. Os programas favorecerão, ainda, a colaboração entre equipas e instituições de investigação e o aprofundamento de relações com instituições e atores do sistema judicial.

O ensino e o conhecimento serão centrais no processo de mudança que se quer induzir.

2 – Formar para a integridade

Dirigentes e funcionários da Administração

A Administração Pública deve cultivar a integridade como virtude, trabalhá-la como competência e assumi-la como exigência funcional.

Uma Administração Pública formada por agentes dotados de elevados padrões deontológicos é condição chave para a redução dos riscos de corrupção.

A constituição de um vínculo de emprego público, o ingresso em determinadas profissões e a nomeação para certos cargos devem pressupor elevados padrões de exigência, não só no plano técnico como no da ética. A possibilidade de introdução, em provas de admissão, de módulos que permitam uma aferição inicial do domínio e grau de incorporação pelos candidatos de valores e princípios com reflexos na integridade constituiria um primeiro obstáculo ao acesso a funções públicas de cidadãos que não preencham mínimos éticos.

Independentemente do tipo de provas de ingresso em funções públicas, a formação subsequente, em todos os setores da Administração, deve incorporar conteúdos com uma forte componente de preparação para a probidade e de prevenção de práticas corruptivas.

Para o efeito, deve privilegiar-se o envolvimento institucional de entidades com responsabilidades na formação de dirigentes e funcionários públicos, como o Instituto Nacional de Administração, I. P. (INA, I. P.), a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público e outras entidades com capacidade para o exercício de atividades formativas, como a Fundação para os Estudos e Formação nas Autarquias Locais ou o Instituto de Gestão e Administração Pública, bem como estruturas equivalentes existentes nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e o Centro de Estudos Judiciários, em relação às magistraturas.

Os cursos e programas previstos na Portaria n.º 146/2011, de 7 de abril, designadamente o Curso Avançado de Gestão Pública, o Programa de Formação em Gestão Pública e o Curso de Alta Direção em Administração Pública deverão ser incrementados com a inclusão de conteúdos orientados para a prevenção e a deteção da corrupção.

A existência, implementação, atualização e observância de programas de cumprimento normativo (mapas de riscos de corrupção, códigos de conduta, manuais de boas práticas) devem ter inscrição nos processos avaliativos, como forma de se assegurar a efetividade desses programas nas dinâmicas da Administração.

Tendo em vista a implementação dos programas de cumprimento normativo, deve igualmente promover-se a realização periódica de ações de formação que capacitem os dirigentes e funcionários para detetar fenómenos de corrupção e para perante eles reagir, bem como ações que contribuam para a interiorização dos planos de prevenção ou gestão de riscos e do código de ética ou de conduta.

A formação, para além de permitir a interiorização dos instrumentos vigentes no serviço ou organismo em que se insere o dirigente ou funcionário, é também um meio para representar os dilemas típicos do agente público que é sujeito a uma proposta corruptiva ou a um possível conflito de interesses. A reflexão sobre este tipo de situações, em abstrato, pode favorecer a tomada de decisões éticas em casos concretos e contribuir para o reforço de uma cultura organizacional mais comprometida com a ética pública.

A promoção da formação de formadores no domínio da ética e das boas práticas em serviços públicos reveste-se também de grande importância, considerando-se central, também aqui, a intervenção do INA, I. P. O aumento da disponibilidade de formadores permitirá realizar mais ações de formação, reforçando os valores organizacionais, a assimilação dos códigos de ética e de conduta, a identificação das situações de conflitos de interesses e o mapeamento de riscos.

Sem prejuízo de uma intervenção mais centralizada a que se aludiu supra, os serviços e organismos da Administração Pública devem criar estruturas internas capazes de desenvolver ações formativas próprias, que tenham em conta as especificidades da sua atividade.

3 – Reforçar a transparência e a dimensão de integridade no exercício da atividade política e de altos cargos públicos

As instituições

O Parlamento dispõe de uma Comissão Parlamentar da Transparência e Estatuto dos Deputados, criada pela Lei n.º 7/93, de 1 de março(6), com o objetivo de garantir o exercício dos mandatos parlamentares com efetiva transparência e liberdade.

No fim da legislatura passada, entre junho e setembro de 2019, foram aprovados quatro diplomas(7) resultantes dos trabalhos da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas, criada no seio da Assembleia da República em 2016.

Esses diplomas introduziram alterações ao regime de subsídios de apoio à atividade política dos deputados, ao Estatuto dos Deputados – nomeadamente na parte respeitante ao regime de incompatibilidades, obrigações declarativas e registo de interesses – e ao regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, regulando-se, designadamente, quanto a impedimentos de intervenção em determinados procedimentos administrativos e de contratação e de desempenho de determinadas funções durante e após o exercício dos respetivos cargos e ainda quanto a obrigações declarativas e respetivo regime sancionatório – tendo sido criada uma entidade – a Entidade para a Transparência – com o objetivo de fiscalizar a declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos.

Obrigações declarativas

Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos estavam já sujeitos a obrigações declarativas.

Os magistrados judiciais e do Ministério Público, em resultado das alterações ao regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, ficaram sujeitos às obrigações declarativas aí previstas – declaração única de rendimentos e património, interesses, incompatibilidades e impedimentos (artigo 5.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, artigo 7.º-E do Estatuto dos Magistrados Judiciais e n.º 3 do artigo 6.º do Estatuto do Ministério Público).

Com essa intervenção legislativa ficou assegurada a universalidade das obrigações declarativas por parte dos titulares de todos os órgãos de soberania.

A criação de uma declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos e a previsão da sua apresentação por via eletrónica, reduzindo a complexidade dos procedimentos, concorre para melhorar as condições de cumprimento das obrigações declarativas.

A não apresentação intencional da declaração única ou da respetiva atualização, após notificação, passou a ser punida por crime de desobediência qualificada, com pena de prisão até três anos.

A falsidade, por incongruência entre os elementos patrimoniais ou rendimentos que o titular de cargo político, de alto cargo público ou magistrado estava obrigado a declarar, em valor superior a 50 salários mínimos mensais, e os elementos declarados, com intenção de ocultação, passou também a ser punida com prisão até três anos.

A efetividade do cumprimento do regime declarativo previsto para os titulares de cargos políticos tem pressuposta a existência de mecanismos de fiscalização eficazes. A criação da Entidade da Transparência visou assegurar o necessário controle. Impõe-se concluir a sua instalação com a máxima brevidade, a fim de garantir o cumprimento das missões que lhe foram apontadas, permitindo também uma avaliação precoce da valia do modelo adotado.

Impõe-se, também, tornar efetiva a fiscalização da declaração única por parte dos Conselhos Superiores, devendo estes publicitar os termos e a periodicidade desse controlo.

Sendo os magistrados titulares do órgão de soberania tribunais e sendo o acesso ao cargo dependente de concurso e de um período probatório, é indispensável que na seleção e formação o Centro de Estudos Judiciários atribua o destaque que se exige a matérias de integridade e probidade, desde logo ao nível do procedimento concursal e, subsequentemente, na formação.

«Portas giratórias»

A definição legal de um regime de impedimentos aplicável aos titulares de cargos políticos após a cessação de funções previne o risco das denominadas «portas giratórias».

Em resultado do conjunto de iniciativas legislativas aprovadas pelo Parlamento no final de 2019, os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos contado a partir da data da cessação do respetivo mandato, funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado e que, no período daquele mandato, tenham sido objeto de operações de privatização, tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual, ou relativamente às quais tenham tido uma intervenção direta, a menos que se trate de uma empresa ou atividade exercida à data da investidura no cargo.

Está-lhes também vedado o exercício, pelo período de três anos contado a partir da data da cessação do mandato, de quaisquer funções de trabalho subordinado ou consultoria em organizações internacionais com quem tenham estabelecido relações institucionais em representação da República Portuguesa, com exceção das instituições da União Europeia, das organizações do sistema das Nações Unidas e dos casos de regresso a carreira anterior, de ingresso por via de procedimento concursal ou de indicação pelo Estado Português ou em sua representação.

Os representantes ou consultores mandatados pelos governos da República e regionais em processos de concessão ou alienação de ativos públicos estão também proibidos de exercer funções nas entidades concessionárias ou adquirentes nos três anos posteriores à data da concessão ou alienação de ativos em que tenham tido intervenção.

Mostra-se, assim, assegurado um controle mínimo dos processos de transição para o setor privado no termo do exercício de funções políticas de caráter executivo.

Será, no entanto, possível melhorar a robustez das respostas identificadas para sancionar as violações daquelas regras. A previsão de uma sanção pecuniária de valor considerável – com um limite máximo equivalente ao montante total das remunerações percebidas como titular de cargo político – teria seguramente maior potencialidade dissuasora.

Financiamento dos partidos políticos

O financiamento dos partidos é uma questão identificada como crítica no domínio da transparência no funcionamento das instituições democráticas.

Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, alterou a Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e a Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos), aumentando o grau de exigência no escrutínio e clarificando as atribuições da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos. Não se identifica aqui um problema de omissão legislativa, mas de aplicação tempestiva e sistemática da lei.

O bom funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos é condição de efetivação de um adequado controlo do cumprimento das regras de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Importa proceder a uma avaliação rigorosa e independente das condições de funcionamento da referida Entidade, para identificação dos constrangimentos que enfrenta e adoção das soluções idóneas à sua superação. Só ultrapassada esta fase se deve avaliar a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, a fim de compreender se esta abrange de modo exaustivo os meios de financiamento partidário.

A respeito do financiamento dos partidos políticos, importa ainda promover uma publicação mais eficiente das respetivas contas, de forma uniformizada e de acesso facilitado, nomeadamente em relação aos períodos eleitorais.

Os procedimentos

Legislar claro, rasgando o véu de opacidade que se interpõe entre os cidadãos e o processo legislativo, cria sociedades mais participativas e mais confiantes nas suas instituições.

Apesar dos avanços que se têm verificado, em particular na dimensão institucional, existe ainda um espaço de progressão importante na componente do processo legislativo e dos procedimentos administrativos.

O estabelecimento da obrigatoriedade de registo de qualquer intervenção de entidades externas no processo legislativo, desde a fase de conceção, com a consagração de um princípio de «pegada legislativa», é uma medida de reforço da transparência que deve ser implementada.

Estão pendentes na Assembleia da República projetos legislativos sobre a regulação da atividade vulgarmente conhecida por lobby.

Na mesma linha de reforço da transparência inscrevem-se outras iniciativas, também no campo da produção legislativa, como o aprofundamento da experiência, já em curso, de avaliação da permeabilidade das leis aos riscos de fraude, corrupção e infrações conexas, como a exigência de uma avaliação prévia das medidas de política na perspetiva da corrupção ou o legislar claro, impondo uma avaliação legislativa que identifique e impeça que se criem obscuridades legais, contradições normativas ou labirintos jurídicos que favoreçam os comportamentos administrativos «facilitadores», designadamente com recurso à ciência de dados e a ambientes digitais de simulação legislativa.

A adesão de Portugal ao Open Government Partnership(8), em dezembro de 2017, a instituição da Rede Nacional de Administração Aberta e a elaboração e aprovação, em dezembro de 2018, do I Plano Nacional de Administração Aberta, assumindo compromissos específicos de ação e de divulgação das melhores práticas internacionais nesse domínio, foram passos decisivos para a constituição de uma Administração Pública mais transparente, mais próxima e mais capaz de responder às necessidades dos cidadãos.

A dinamização da Rede, bem como a atualização e implementação do Plano introduzirão um novo modelo de relacionamento entre a Administração e os cidadãos, mais participado, simples e acessível.

Encontra-se em fase de desenvolvimento o II Plano Nacional de Administração Aberta.

A contratação pública é uma das áreas em que se justificam alterações ao quadro legal, no sentido de tornar os procedimentos mais transparentes e assim reduzir os contextos facilitadores da corrupção.

Esse resultado pode ser alcançado, nomeadamente, através de uma mais ampla publicitação do procedimento contratual; do aperfeiçoamento do regime de impedimentos; de uma mais rigorosa densificação do princípio da imparcialidade, estendendo o conflito de interesses à fase da preparação do procedimento de formação de contrato público; de um melhor recorte das entidades relacionadas para efeitos de escolha de convidados a participação no procedimento; da determinação da obrigatoriedade das entidades adjudicantes assegurarem que os operadores com quem se relacionam garantem o respeito pelas normas aplicáveis em matéria de prevenção e combate à corrupção.

Apesar da implementação do Open Contracting Data Standard ao nível da contração pública, importa intervir implementando-o integralmente na base de dados de contratos públicos e do Observatório das Compras Públicas, melhorando a qualidade da informação e estruturando-a em termos que facilitem a extração e o tratamento dos dados disponibilizados.

Transparência na governança de fundos públicos

A utilização de fundos, europeus ou outros, destinados a apoiar a execução de políticas públicas deve ser monitorizada através de estruturas de governança adequadas, publicitadas e escrutináveis.

Os principais fundos europeus estão já vinculados, na sua execução, a modelos de governança que garantem a existência de sistemas de controle interno e o escrutínio, tanto pelas autoridades nacionais como pelas competentes instâncias europeias. Impõe-se, no entanto, aperfeiçoar tais modelos, reforçando a transparência através da publicitação dos processos e implementando mecanismos que permitam não só antecipar situações de fraude e concretizar os princípios da segregação de funções de gestão e prevenção de conflitos de interesse, como também assegurar a prestação de contas e reforçar as auditorias e ações de prevenção junto dos beneficiários.

O modelo de governança do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) prevê a existência de estruturas a três níveis: um nível de coordenação política, um nível de acompanhamento e um nível de coordenação técnica e de monitorização. As funções de auditoria são asseguradas pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF), em articulação com entidades com atribuições em matéria de prevenção de corrupção e de fraude.

Este modelo mostra-se idóneo à prevenção e deteção dos conflitos de interesses, da fraude e da corrupção, através de um sistema de controlo interno que permite a verificação da realização física e financeira das intervenções, bem assim como a prevenção e deteção precoce de irregularidades.

Ainda no sentido de assegurar uma maior transparência, prevê-se a instituição de um mecanismo que possibilitará a consulta de informação individualizada sobre os investimentos financiados, facilitando também o tratamento dessa informação por agregados diferentes.

Também a área de atribuição de subvenções públicas pelo Estado e outras pessoas coletivas públicas deve conhecer uma intervenção, atenta a necessidade de criação de um regime geral que complemente o da Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto.

Como exemplo de prática que visa reforçar a transparência, garantir um uso mais são dos dinheiros públicos e promover o envolvimento e confiança dos cidadãos nos procedimentos públicos, pode ser destacado o pacto de integridade celebrado entre a Associação Transparência Internacional e a Direção-Geral do Património Cultural, a propósito de obras de conservação e restauro a realizar no Mosteiro de Alcobaça. Este pacto de integridade foi o primeiro a ser celebrado em Portugal, em dezembro de 2018. De acordo com a Transparência Internacional, o pacto de integridade é «um instrumento simples, flexível e adaptável, que permite implementar bons padrões de contratação sem necessidade de reformas legais, e pode ser aplicado a uma grande variedade de contratos públicos». A celebração destes pactos pode ser ponderada em futuros projetos.

Por outro lado, as decisões administrativas que concedam vantagens económicas acima de determinado valor devem ser tomadas por mais de um decisor, consagrando-se assim o princípio dos «quatro olhos», devendo igualmente ser publicitadas para se garantir o adequado escrutínio.

As vendas judiciais são ainda um segmento a justificar um aumento da transparência. Razões de transparência impõem o reforço do caráter privilegiado do leilão eletrónico enquanto modalidade de venda. A venda de bens por negociação particular (artigo 811.º do Código de Processo Civil) não deve constituir uma modalidade subsidiária logo que se frustre a primeira tentativa de venda em leilão eletrónico, por falta de proponentes.

4 – Reduzir a burocracia

Aumentar a eficiência

Uma malha burocrática excessiva atrasa as decisões a tomar pela Administração Pública e dificulta o acesso à informação e a decisão, em tempo útil, das pretensões dos cidadãos.

O desenvolvimento de instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis é uma das metas inscritas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas (Objetivo 16 Paz Justiça e Instituições Eficazes).

O entorpecimento das interações entre a Administração Pública e os cidadãos pode criar incentivos a práticas corruptivas, seja para acelerar procedimentos, seja para dispensar do cumprimento de requisitos formais. A complexidade dos procedimentos pode ser aproveitada para a criação de «dificuldades» e para a sugestão ou exigência de contrapartidas a pretexto da remoção dos obstáculos.

É preciso eliminar as barreiras administrativas e a complexidade regulamentar que dificultam a decisão, em tempo útil, das pretensões dos cidadãos e condicionam o acesso destes à informação e ao processo decisório.

As sucessivas gerações do programa SIMPLEX têm dado um contributo valiosíssimo na simplificação e desburocratização das relações entre a Administração e os cidadãos, eliminando atos burocráticos e barreiras administrativas, e promovendo a confiança dos cidadãos na Administração Pública. A nova edição do programa, entretanto lançada, aprofunda esse caminho.

A Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da Administração Pública 2020-2023, aprovada pelo Governo em junho de 2020, também fornece ferramentas com grande potencial de aproximação da Administração Pública aos cidadãos.

Sendo incontornável a necessidade de existência de regras formais que garantam a igualdade dos cidadãos perante a Administração Pública e que diminuam os riscos de decisões arbitrárias, considera-se que deverão ser implementados procedimentos simples e eficientes, que aproximem o cidadão da Administração e fomentem relações de confiança.

Os trabalhadores em funções públicas que aplicam quotidianamente as leis e os regulamentos nos diferentes setores da atividade do Estado estão numa posição privilegiada para identificar os constrangimentos internos e para percecionar as dificuldades sentidas por quem tem de dirigir-se aos serviços públicos.

O método adotado na preparação da Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da Administração Pública 2020-2023, com a constituição de oficinas de participação envolvendo funcionários das várias áreas da Administração, está alinhado com esta ideia.

Devemos aprofundar o princípio, criando canais dedicados de comunicação entre os organismos e serviços e a correspondente tutela, disponibilizados, por exemplo, nas redes de intranet, através dos quais possam ser apresentadas propostas para melhorar procedimentos e identificar os atos exigidos por lei ou regulamento que se afigurem inúteis ou excessivamente onerosos, facilitando assim a sua eliminação ou modificação.

A criação destes canais promove uma cultura de maior proximidade e de inclusão nos processos de transformação no seio da Administração.

Também com o intuito de promover a eficiência, ao mesmo tempo que reforçamos a transparência, deverá ser garantida a presença, em todas as entidades públicas, de normas de controlo interno – garantes de imparcialidade e cumprimento da legalidade -, devidamente publicitadas, designadamente nas áreas da contratação ou da segurança de inventários. Nesta linha, serão integrados os sistemas de gestão financeira com os sistemas de inventariação e contratação no âmbito da administração direta e indireta do Estado, estendendo-se estas ferramentas à administração regional e local.

5 – Digitalizar as comunicações e informatizar os serviços prestados

A facilitação do acesso dos cidadãos aos serviços públicos e a simplificação e desmaterialização dos procedimentos administrativos melhoram a comunicação do Estado com os cidadãos.

A aposta num setor público dinâmico, ao nível das tecnologias de informação e comunicação, bem como ao nível da modernização e inovação tecnológica, permite, em termos globais, aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados, constituindo, por isso, um dos principais desígnios do Governo em matéria de transição digital, patente no Plano de Ação para a Transição Digital(9).

A digitalização das comunicações entre a Administração Pública e os cidadãos facilita o acesso aos serviços públicos e permite uniformizar os procedimentos através da sua predefinição informática. A eliminação da necessidade de deslocação dos cidadãos aos serviços pode contribuir para a redução das oportunidades de ocorrência de abordagens impróprias e de práticas corruptivas.

O III pilar do Plano de Ação para a Transição Digital, dedicado à Digitalização do Estado, contempla entre as suas medidas a digitalização dos 25 serviços públicos mais utilizados por cidadãos e empresas, com o objetivo de garantir a simplificação e o acesso online a esses serviços, assegurando a sua desmaterialização e o acesso universal aos serviços públicos digitais.

Espera-se que esta medida contribua ativamente para a redução dos entraves burocráticos nos serviços públicos e otimize outros canais de contacto à distância com a Administração Pública, favorecendo simultaneamente a descarbonização e a melhoria significativa do meio ambiente.

A Administração Pública deve, assim, em linha com os objetivos do Plano de Ação para a Transição Digital, prosseguir no aumento da oferta de serviços por via informática.

A progressiva informatização dos serviços disponibilizados permite, por outro lado, criar sistemas inteligentes de identificação de padrões de comportamento associados a práticas corruptivas.

Na verdade, são múltiplas as situações que, em abstrato, envolvem risco de associação a práticas ilícitas. A título meramente exemplificativo pode referir-se a criação de muitas empresas ou associações, pela mesma pessoa, num curto período, sem que seja identificável uma justificação válida.

Impõe-se, pois, o desenvolvimento de soluções informáticas dotadas de sistemas de alerta para situações suspeitas.

A venalidade traduzida na troca de favores ou na aceitação de vantagens indevidas constitui um enorme risco para o Estado, sobretudo num contexto em que a transição digital – com a desmaterialização de fluxos de informação e de procedimentos, e a tendência para a interoperabilidade dos sistemas de informação públicos – favorece o acesso quase indiscriminado dos agentes públicos a informação disponível nos sistemas da Administração.

A estruturação dos sistemas informáticos tem de acautelar o risco de acesso e utilização indevida ou abusiva das informações disponibilizadas pelos cidadãos.

A segurança da informação, na perspetiva da limitação do acesso à satisfação das necessidades de recolha, é essencial à confiança dos cidadãos no processo de transição digital da Administração Pública.

6 – Facilitar o acesso e melhorar a qualidade da informação

Um cidadão mais bem informado é um cidadão mais capaz de identificar e de reagir perante ineficiências, erros ou imposições sem fundamento legal ou regulamentar.

Os serviços e organismos públicos devem disponibilizar, de forma simples e em fontes acessíveis, a informação de que os cidadãos carecem para satisfação das suas pretensões.

A adoção, no Programa SIMPLEX, de uma medida destinada a oferecer aos cidadãos, no momento em que formulam um pedido, informação relevante sobre o tempo estimado para a tomada de decisão, a identificação dos responsáveis pela decisão e dos técnicos envolvidos no procedimento, bem como o valor a pagar pelo serviço prestado, superará o défice de informação que hoje se faz sentir em vários setores.

Paralelamente, os serviços e organismos da Administração Pública devem desenvolver guias informativos com a descrição dos serviços que prestam, dos requisitos da prestação, dos prazos médios de decisão e dos pagamentos associados.

Dispondo o cidadão de um guia prático de fácil consulta e linguagem acessível que lhe identifique os passos a seguir perante um determinado pedido à Administração Pública, aquele poderá, mais facilmente, acompanhar e analisar as interações com a Administração, diminuindo o risco de solicitações indevidas. A medida permite ainda desenvolver, gradualmente, relações de confiança entre os cidadãos e a Administração Pública, promovendo estabilidade, previsibilidade e uniformidade na atuação dos serviços e organismos públicos.

Estes guias devem existir em vários formatos – disponibilizados no sítio da Internet dos serviços e organismos públicos, nas respetivas instalações ou até mesmo acessíveis telefonicamente – a fim de garantir que todos os cidadãos, independentemente da sua condição, têm acesso à informação.

A DGPJ publicou, em dezembro de 2019, dois guias relativos ao acesso ao direito e à justiça (cidadãos e empresas)(10). Para além de uma abordagem geral e de informações sobre o acesso aos serviços da justiça, o «guia empresas» aborda especificamente a questão da corrupção.

Poderá ainda ser desenvolvida uma ficha procedimental normalizada, de aplicação aos vários procedimentos administrativos, que ofereça ao particular a possibilidade de conhecer imediatamente, e de forma simplificada, os elementos do procedimento em causa, como o prazo, o custo, as formas de reação administrativa e judicial, os passos informáticos que permitem acompanhar o estado do procedimento e os mecanismos de agilização procedimental e de simplificação a que poderá recorrer. Nos procedimentos administrativos que operem através de uma plataforma eletrónica, esta ficha deverá ser gerada automaticamente aquando da submissão do requerimento de início do procedimento.

7 – Campanhas de sensibilização

Dezembro, mês anticorrupção

A sensibilização dos cidadãos quanto à dimensão, características e efeitos do fenómeno da corrupção implica a conceção de campanhas que, em linguagem acessível, alertem para comportamentos quotidianos impróprios associados a fenómenos de corrupção, contribuindo assim para uma melhor deteção dos mesmos, do mesmo passo que incentivam o seu repúdio. Esta abordagem é também fundamental para a formação de cidadãos mais exigentes, mais atentos e menos tolerantes a comportamentos corruptivos.

Tais campanhas poderão ser concretizadas, nomeadamente, através da disponibilização de cartazes nos diversos balcões de atendimento dos serviços e organismos públicos, nos quais se explicite, para além dos exemplos acima referidos, os meios de denúncia de solicitações, aceitações, dádivas ou promessas ilícitas.

Para aumentar o impacto dessas campanhas, deverão ainda ser utilizados meios de divulgação de publicidade institucional mais abrangentes, como a televisão, a rádio e os jornais.

As Nações Unidas declararam o dia 9 de dezembro o dia internacional contra a corrupção. Potenciando essa circunstância, o mês de dezembro será aproveitado para a realização de ações contra a corrupção, organizando-se um programa anual que congregue iniciativas nas várias áreas da governação.

Prevenir e detetar os riscos de corrupção na ação pública

1 – Instrumentos gerais

A definição de quadros claros, em matéria de incompatibilidades, impedimentos e inelegibilidades por virtude de exercício de cargos políticos; a implementação de regras que maximizem a transparência e facilitem o escrutínio da atividade legislativa e do exercício de funções executivas, a nível central, regional e local, nomeadamente no que se refere aos procedimentos legislativos suscetíveis de gerar vantagens económicas para setores determinados e aos grandes contratos do Estado; a adoção de padrões de ética comportamental traduzidos em Códigos de Conduta públicos, favorecem a prevenção de condutas improbas.

A adoção de Códigos de Conduta com prescrições simples em matéria de conflitos de interesses, de aceitação de convites, de recebimento de ofertas de bens e serviços e de recusa de comportamentos ativos ou omissivos norteados pela realização de interesses próprios é uma medida que pode ser encarada pelos vários órgãos de soberania e pelos órgãos do poder regional e local como idónea à prevenção de fenómenos corruptivos.

Os Códigos de Conduta têm uma função clarificadora e grande potencial de limitação de práticas erosivas da imagem de rigor e integridade de quem é chamado a desempenhar cargos políticos e altos cargos públicos.

A legislação introduzida em 2019, por ação da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas, introduziu a obrigatoriedade de aprovação de Códigos de Conduta, pela Assembleia da República, em relação aos Deputados, serviços e membros de gabinetes; pelo Governo, em relação aos seus membros, gabinetes e entidades da Administração Pública e do setor público empresarial do Estado; pelos órgãos executivos das autarquias locais; pelos órgãos dirigentes das entidades autónomas e entidades reguladoras e pelos Conselhos Superiores, no quadro da respetiva autonomia, relativamente aos magistrados.

A obrigatoriedade de adoção destes Códigos de Conduta, a par dos regimes de incompatibilidades e impedimentos garantem a existência de um padrão comum de exigência ética no exercício de funções políticas e da atividade pública.

O XXI Governo Constitucional aprovara já, em setembro de 2016, um Código, enunciando um conjunto de princípios da ação dos membros do Executivo e prevendo regras concretas em matérias como conflitos de interesses, aceitação de convites ou benefícios similares e recebimento de ofertas.

Esse Código de Conduta foi atualizado em 2019, já na vigência do XXII Governo Constitucional, em consonância com as disposições da referida Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, um dos quatro diplomas em matéria de transparência aprovados pelo Parlamento no final da última legislatura.

Os Códigos de Conduta devem ser reapreciados no início da legislatura, no início de funções do Governo e dos órgãos executivos da autarquia local, com a introdução de mecanismos que reforcem a transparência e melhorem a qualidade das condições de escrutínio público.

Os titulares de cargos políticos, os membros dos respetivos gabinetes e os magistrados tomam conhecimento dos correspondentes códigos de conduta em ato sequente à posse. A promoção, com periodicidade no mínimo anual, de sessões que envolvam debate sobre o conteúdo e os níveis de cumprimento dos Códigos de Conduta assegurará uma melhor incorporação das regras do estatuto nas dimensões ética e deontológica.

Adoção de programas de cumprimento normativo no setor público (programas de public compliance)

Por outro lado, a adoção de programas de cumprimento normativo (programas de compliance) como forma de promoção da ética na ação pública complementa as obrigações formativas e facilita a criação de um verdadeiro sistema de prevenção da corrupção.

O conteúdo desses programas, colhendo embora a sua base na experiência do setor privado, deve ser adaptado às características específicas dos organismos e serviços da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e do setor público empresarial, envolvendo as funções formulação – identificar, definir e estruturar; implementação – informar, incentivar e organizar; consolidação e aperfeiçoamento – reagir, sancionar e aperfeiçoar.

Nessa lógica, os programas incluirão as seguintes componentes:

a) Análise de riscos e planos de prevenção ou gestão de riscos;

b) Código de ética ou de conduta;

c) Mecanismos de controlo do cumprimento das normas;

d) Formação dos destinatários e difusão do programa de cumprimento;

e) Mecanismos de deteção do incumprimento, designadamente por via da criação de canais de denúncia interna;

f) Sanções para o incumprimento;

g) Investigações internas;

h) Designação do responsável pelo programa de cumprimento normativo;

i) Avaliação periódica e sempre que se justificar;

j) Documentação da atividade.

Análise de riscos e planos de prevenção ou gestão de riscos

As instituições públicas e os serviços e organismos do Estado devem avaliar os riscos de corrupção e suborno associados ao tipo de atividade que desenvolvem, à natureza dos serviços que prestam e ao contexto em que esses serviços são prestados.

Para o efeito, terão de elaborar planos de prevenção ou de gestão de riscos, nos quais são identificados os serviços ou atos mais permeáveis ao suborno, ao aproveitamento ou desvio de fundos e ao favorecimento pessoal ou de terceiros, bem como as medidas a adotar para reduzir os riscos e as formas de reação face a práticas ilícitas.

Na elaboração destes planos de prevenção ou gestão de riscos tem sido acolhido como referência o denominado «ciclo de Deming», que se traduz em quatro momentos relevantes no processo de identificação de riscos e de prevenção de atos ilícitos.

O primeiro momento – planeamento – destina-se a identificar, em todos os níveis hierárquicos, os riscos associados à natureza da atividade do organismo e aos serviços que presta, assim como as medidas adequadas à prevenção desses riscos.

O segundo momento – execução – consiste em pôr em prática as medidas preventivas identificadas no momento do planeamento, assegurando aos trabalhadores a formação necessária para a compreensão dessas medidas.

O terceiro momento – verificação – diz respeito à confirmação da aplicação das medidas preventivas por parte dos trabalhadores dos serviços e organismos públicos, devendo prever-se a existência de canais para a denúncia de práticas em desrespeito ao plano, ou que possam configurar atos de corrupção.

O quarto e último momento – atuação – visa a análise da eficácia (ou falta dela) do plano de prevenção ou gestão de riscos, bem como das eventuais violações comunicadas, e a elaboração de um relatório que permita melhorar, se necessário, o plano e as medidas implementadas.

O CPC alertou já para a necessidade de lançamento da segunda geração de planos de prevenção de riscos de gestão.

Código de ética ou de conduta

Associada à elaboração dos programas de prevenção ou gestão de riscos está a elaboração de códigos de ética ou de conduta, que descrevam de forma sucinta, objetiva e clara os comportamentos esperados de todos os trabalhadores.

Estes instrumentos devem ser simples, facilmente compreensíveis pelos destinatários e adaptados às especificidades da respetiva atividade. Para se lograr alcançar estes resultados recomenda-se o envolvimento, no processo de elaboração, de todos os interessados.

Paralelamente, devem ser desenvolvidos manuais de boas práticas, bem como medidas de controlo de conflitos de interesses.

Canais de denúncia

A existência de canais de denúncia e uma adequada proteção dos denunciantes de violações dos planos de cumprimento normativo é essencial para garantir que quem cumpre a lei não se torna alvo de retaliações. Tendo em conta, nomeadamente, instrumentos jurídicos vigentes na União Europeia, de que é exemplo a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União, as instituições, os serviços e organismos públicos devem criar canais para denúncia interna de incumprimentos normativos ou atos de corrupção.

O responsável pelo programa de cumprimento normativo

Para a boa aplicação prática do programa de cumprimento normativo, é fundamental a institucionalização de um ou mais responsáveis pelo programa, em função da dimensão da instituição, do organismo ou do serviço, que acompanhe a sua implementação e atualização de modo independente e com liberdade na tomada de decisões face ao universo dos destinatários do programa.

As responsabilidades funcionais de quem assume este tipo de cargos já são, de alguma forma, reconhecidas em Portugal, designadamente ao prever-se a figura do responsável pelo cumprimento normativo no âmbito da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Colhendo inspiração na mencionada lei e considerando o objetivo da presente Estratégia, ao responsável pelo cumprimento normativo nos vários serviços e organismos caberá, nomeadamente:

Participar na definição dos planos de prevenção ou gestão de riscos e emitir parecer prévio sobre eles, zelando pela sua contínua adequação, suficiência e atualização;

Participar na definição, acompanhamento e avaliação da política de formação ministrada aos dirigentes e funcionários;

Assegurar a concentração de toda a informação que diga respeito à construção, implementação e revisão dos programas de prevenção ou de gestão de riscos, incluindo as denúncias de práticas desconformes ao plano.

2 – Regime Geral de Prevenção da Corrupção

A articulação de todas as componentes referidas acima deve ser materializada num Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC). Este RGPC permitirá retirar do domínio da soft law, em termos gerais, a implementação de instrumentos como os planos de prevenção ou gestão de riscos, os códigos de ética e de conduta, os canais de denúncia e a designação de um responsável pelo cumprimento normativo. Para o efeito, propõe-se que sejam previstas sanções, nomeadamente contraordenacionais, aplicáveis quer ao setor público, quer ao setor privado.

3 – O Mecanismo de Prevenção da Corrupção

Para garantir a efetividade das políticas anticorrupção, a implementação dos mecanismos de prevenção e a operacionalidade e eficácia do sistema, impõe-se a existência de um Mecanismo (ou Agência) autónomo, que agregue competências e detenha poderes de iniciativa, de controlo e de sancionamento.

Este Mecanismo deverá ser uma entidade independente, operando em estreita articulação com as inspeções setoriais e tendo como missão garantir a efetividade das políticas de prevenção da corrupção.

No âmbito da sua missão, o Mecanismo será responsável pelo controlo da implementação do RGPC, pela verificação das respetivas infrações, processamento das contraordenações e aplicação das correspondentes coimas, cabendo-lhe também estabelecer uma articulação entre as entidades públicas e privadas com intervenção em matéria da prevenção e repressão da corrupção.

O Mecanismo ficará outrossim responsável pela recolha, tratamento e produção regular de informação sobre o fenómeno da corrupção e pela elaboração do Relatório Anticorrupção.

Impenderá sobre o Mecanismo, do mesmo modo, a gestão da plataforma comunicacional para partilha de boas práticas e a gestão do programa de atividades anual, que deverá compreender, designadamente, eventos e campanhas de sensibilização que criem nos cidadãos um conhecimento mais efetivo dos seus direitos e que fortaleçam o repúdio pelos fenómenos corruptivos.

O Mecanismo trabalhará em articulação com a academia, com outros centros de saber e de competências e organizações não governamentais na produção de conhecimento especializado e de modelos e conteúdos de informação para difusão pública.

4 – As inspeções-gerais, entidades equiparadas e inspeções regionais

As inspeções-gerais, entidades equiparadas e inspeções regionais desempenham um papel fundamental no sistema de prevenção da corrupção no interior da Administração Pública. Os seus titulares podem integrar o Mecanismo e os seus planos de atividade devem ter uma forte componente de identificação de ações ou omissões com reflexo no afrouxamento da ação preventiva em matéria de corrupção. Estes organismos desenvolvem já hoje atividade muito relevante nessa matéria, facilitada pela ação do CPC que emite regularmente recomendações incidindo sobre planos de prevenção de corrupção e ferramentas conexas.

Nessa linha, a Inspeção-Geral dos Serviços de Justiça (IGSJ) iniciou, em 2018, uma profunda reflexão interna, tendo procedido à elaboração de um contributo para a implementação de uma estratégia de consolidação de uma política de prevenção da corrupção na Administração Pública, corporizado num documento constituído por dois segmentos:

Projeto de regulamentação, apto a ser aplicado à generalidade dos serviços, organismos e outras estruturas de diversas áreas governativas, sistematizando e densificando comandos dispersos, enfatizando alguns procedimentos, instituindo outros e estabelecendo prazos até agora não fixados;

Identificação dos principais riscos qualificados como elevados ou outros especialmente expostos a fenómenos de corrupção e a outras infrações conexas, no âmbito do Ministério da Justiça, e exemplos de boas práticas que, no âmbito dessa área governativa, se entendeu permitirem enformar medidas preventivas com vista à eliminação ou mitigação dos riscos identificados.

No projeto de regulamentação previu-se que os serviços de inspeção setorial, tendo em conta a sua natureza transversal, procedessem à divulgação entre os serviços e organismos da respetiva área governativa de exemplos de boas práticas que permitam enformar medidas preventivas com vista à eliminação ou mitigação dos riscos identificados.

Simultaneamente, valorizando a visão mais abrangente dos organismos integrantes das várias áreas de inspeção, mas também do conhecimento próximo das realidades próprias de cada um, apontava-se no sentido do reforço do papel das inspeções setoriais, enquanto garantes da permanente atualização dos planos de prevenção da corrupção e de infrações conexas.

Cumpre também assinalar que, com a incorporação da Inspeção-Geral da Administração Local na IGF, em dezembro de 2011, foi concentrado neste último organismo o exercício da tutela inspetiva sobre as autarquias locais. As específicas características da administração local reclamam uma atenção diferenciada que capte, para além do controlo da administração financeira da receita e da despesa públicas, as dimensões da ética e da transparência associadas ao exercício de funções em órgãos e serviços de autarquias locais.

5 – Reforço da eficácia da atuação do Tribunal de Contas

O reforço da ação de controle e fiscalização financeira do Tribunal de Contas é também um meio para promover maior transparência e fomentar a integridade na ação dos serviços e organismos da Administração, sujeitos à sua jurisdição. A legislação que define as competências do Tribunal de Contas reflete já alguma inadequação face à disciplina orçamental, ao sistema de contabilidade pública, assim como à evolução da economia, da sociedade e das instituições.

Importa, assim, rever a Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, com o objetivo de dotar de maior eficácia a respetiva ação.

No que respeita à fiscalização prévia da legalidade de atos e contratos, foi atualizado o valor de dispensa dessa fiscalização por via da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, de modo a que o Tribunal de Contas concentre os seus recursos na análise dos atos e contratos de maior valor.

Deve ainda ser alargada a esfera de competência do Tribunal, de molde a abranger, designadamente, entidades cuja atividade seja maioritariamente financiada por dinheiros públicos, ou que estejam sujeitas ao controlo de gestão pública.

No que toca à responsabilidade financeira, deve ser ponderada a possibilidade de sujeitar pessoas coletivas ao regime já previsto para as pessoas singulares.

Comprometer o setor privado na prevenção, deteção e repressão da corrupção

«O 10.º princípio do Pacto Global das Nações Unidas estatui que ‘As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, incluindo a extorsão e o suborno’. Exortamos as empresas a desenvolver políticas e programas para enfrentar todas as formas de corrupção. Desafiamos as empresas a juntarem-se aos seus pares, aos governos, às agências das Nações Unidas e à sociedade civil, para criarmos uma economia global mais transparente.»

ONU

As empresas têm de assumir a centralidade do seu papel na promoção e defesa da ética nas relações entre o setor público e o setor privado, bem como nas relações comerciais dentro do setor privado, domínio no qual o fenómeno da corrupção é também incidente. Não há corrompidos sem corruptores.

Ao imporem elevados padrões comportamentais às suas administrações, trabalhadores e prestadores de serviços, as empresas combatem e desincentivam o aparecimento de corruptores.

A adoção e implementação de programas de cumprimento normativo por parte das empresas têm sido apontadas como vias para um maior comprometimento por parte do setor privado no combate à corrupção.

Os programas de cumprimento normativo são vocacionados para prevenir e reprimir práticas contrárias às normas na empresa, contra a empresa ou através da empresa. Com esta vocação, os programas podem revelar-se um instrumento eficaz na prevenção, deteção e repressão de infrações de natureza administrativa, contraordenacional e penal e, muito particularmente, na prevenção, deteção e repressão do fenómeno da corrupção, seja no setor público, seja no setor privado.

Para que os programas de cumprimento normativo sirvam o objetivo político-criminal de prevenir, detetar e reprimir o fenómeno da corrupção, deve estabelecer-se a sua obrigatoriedade nas empresas de grande e média dimensão e a previsão de consequências para a sua não adoção (por exemplo, a não satisfação de condição de acesso a procedimento de contratação pública, como referido acima, e o estabelecimento de sanções contraordenacionais). Deve estabelecer-se, ainda, em nome da eficácia, que os programas de cumprimento normativo e a sua relevância consequente dependam da fixação legal do conteúdo a que devem necessariamente obedecer. A tendência atual é a da uniformização de tais programas, nomeadamente por via de lei que prescreva o seu conteúdo.

No âmbito do que vem sendo caracterizado como fenómeno de autorregulação regulada, o regime jurídico dos programas de cumprimento normativo no setor privado integra o RGPC.

Por outro lado, importa dar relevância positiva à adoção ou ao aperfeiçoamento de programas de cumprimento normativo ao nível da responsabilidade penal e contraordenacional das pessoas coletivas e entidades equiparadas, à semelhança do que sucede em outros países, onde a relevância substantiva e processual dos programas de compliance se reflete na isenção da responsabilidade penal ou administrativa dos entes coletivos, na determinação da pena em sentido amplo, na resolução consensual e divertida do conflito e na aplicação de medidas cautelares. Entre outros, constituem exemplos de tal relevância, na Europa, os artigos 31 bis e 31 quater do Código Penal espanhol, as secções 6 e 7 do «Bribery Act 2010» do Reino Unido, os artigos 131-39-2 do Código Penal francês e 41-1-2 do Código de Processo Penal francês e os artigos 6.º, 12.º, 17.º e 49.º do Decreto Legislativo italiano n.º 231, de 8 de junho de 2001 (Disciplina della responsabilita’ amministrativa delle persone giuridiche, delle societa’ e delle associazioni anche prive di personalita’ giuridica); e, na América Latina, os artigos 8.º e 9.º da Lei argentina n.º 27 401, de 1 de dezembro de 2017 (Ley de responsabilidad penal de las personas jurídicas por delitos de cohecho, concusión y otros delitos), os artigos 3.º, 6.º e 17.º da Lei chilena n.º 20 393, de 2 de dezembro de 2009 (Ley de responsabilidad penal de las personas jurídicas en los delitos de lavado de activos, financiamiento do terrorismo y delitos de cohecho) e o artigo 7.º da Lei brasileira n.º 12 846, de 1 de agosto de 2013 (Lei sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira).

A adoção ou o aperfeiçoamento dos programas de cumprimento normativo incentiva-se por via da sua repercussão positiva na responsabilização penal, administrativa ou contraordenacional das pessoas coletivas e entidades equiparadas. Isentando-as de responsabilidade, atenuando a sua punição e prevendo soluções e meios processuais diferenciados e menos restritivos, o Estado promove uma cultura empresarial de cumprimento normativo assente na responsabilização penal e contraordenacional das pessoas coletivas e entidades equiparadas. Com ganhos também do ponto de vista da prevenção, deteção e repressão de comportamentos ilícitos por parte das pessoas individuais, nomeadamente por via da possibilidade de denúncia no canal da empresa, e consequente investigação interna, e do seu contributo para a responsabilização penal ou contraordenacional da pessoa individual.

A relação entre responsabilidade penal, administrativa ou contraordenacional de entes coletivos e programas de cumprimento normativo motiva a introdução de alterações no ordenamento jurídico nacional, ainda que não se reveja o modelo de imputação do facto à pessoa coletiva ou entidade equiparada adotado no Código Penal, na legislação penal extravagante e na legislação contraordenacional (modelo base de heterorresponsabilidade) e pese embora a relevância acrescida de tais programas quando se adote o modelo da autorresponsabilidade.

Sem rever o disposto no artigo 11.º do Código Penal, justificam-se, nomeadamente, alterações que atribuam relevância substantiva aos programas de cumprimento normativo ao nível da determinação da pena em sentido amplo (determinação da pena aplicável, determinação da medida concreta e escolha da pena), revendo-se o âmbito das penas principais, acessórias e de substituição aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas.

Além destas alterações, importa considerar outras que deem relevância processual aos programas de cumprimento normativo. Para assim poder ser, há que colmatar, porém, uma lacuna há muito identificada pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas – a previsão de normas de natureza processual penal específicas quando o arguido seja uma pessoa coletiva ou entidade equiparada, à semelhança do que sucede nos ordenamentos jurídicos que responsabilizam penal, contraordenacional ou administrativamente os entes coletivos (por exemplo, no francês, espanhol, chileno, argentino, alemão e italiano).

A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm identificado tal necessidade, nomeadamente, quanto à constituição de arguida, à representação da arguida pessoa coletiva ou equiparada no processo penal, às medidas de coação e de garantia patrimonial, às declarações por intermédio do representante e muito particularmente quanto ao direito ao silêncio, à competência por conexão, às notificações, à declaração de contumácia, à recorribilidade em segundo grau de decisão condenatória, ao regime dos crimes semipúblicos e particulares, ao arquivamento em caso de dispensa de pena e à suspensão provisória do processo.

Atenta a experiência de direito comparado, a relevância processual penal dos programas de cumprimento normativo concretiza-se, nomeadamente, nas medidas de coação aplicáveis à pessoa coletiva ou entidade equiparada, por se poderem repercutir positivamente nas exigências processuais de natureza cautelar que as justificam, e em soluções processuais consensuais do tipo da suspensão provisória do processo (por exemplo, suspensão provisória do processo com a injunção de a pessoa coletiva adotar um programa de cumprimento normativo ou de o melhorar). Pode ainda concretizar-se no aproveitamento da prova produzida em investigações internas, para tanto devendo a lei processual prever expressamente as condições em que essa prova pode ser valorada em processo penal ou contraordenacional.

Prosseguindo ainda o objetivo de comprometer o setor privado na luta contra o fenómeno corruptivo, agora especificamente na sua deteção e repressão, deverá ser expandida a utilidade do registo central do beneficiário efetivo – nomeadamente através do cruzamento de dados com as instituições bancárias e consequente deteção de discrepâncias declarativas e reporte às autoridades -, de forma a que seja possível, de uma forma mais simples e eficiente, desconsiderar a personalidade jurídica e agir contra o beneficiário efetivo de determinada organização. A existência de canais de denúncia prefigura-se como um instrumento da maior relevância na prevenção da corrupção entre privados, criminalizada pela Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, e cuja expressão, como se referiu, não é despicienda.

Reforçar a articulação entre instituições públicas e privadas

O êxito das políticas anticorrupção depende, em grande medida, de uma articulação frutuosa entre um conjunto de instituições públicas e entre estas e as privadas. São convocadas para esta articulação, em particular:

As entidades que integram o Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado (e, dentro deste, do controlo estratégico, que está cometido à IGF – Autoridade de Auditoria, bem como do controlo setorial, a cargo das inspeções setoriais), designadamente com o trabalho preventivo que podem desenvolver relativamente ao fenómeno da corrupção;

O Tribunal de Contas, enquanto entidade com funções de controlo externo da ação do Estado e do setor público, e no qual está sediada a experiência do CPC;

Os tribunais, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal de competência reservada em matéria de prevenção e repressão da corrupção;

Organizações privadas que tenham por objeto estudar e compreender as práticas corruptivas.

O estabelecimento de um intercâmbio permanente de informações relativamente a boas práticas e novas estratégias de prevenção, deteção e repressão dos fenómenos corruptivos leva seguramente a uma maior eficiência na atuação das instituições conectadas. A troca de informações poderá ser facilitada através da criação de «bancos digitais» e de uma plataforma comunicacional que agregue várias instituições.

A criação dessa plataforma será mais facilmente viabilizada com recurso a fundos do Mecanismo de Recuperação e Resiliência.

Com o mesmo intuito, deve organizar-se um encontro a cada dois anos, envolvendo instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, onde estas possam exprimir a sua avaliação do estado do País no que toca à efetividade das políticas anticorrupção, e apresentar propostas de aprimoramento dos instrumentos de prevenção, deteção e repressão. Caberá ao Mecanismo Anticorrupção a criação, operação e acompanhamento da referida plataforma comunicacional e a organização e promoção do descrito encontro de instituições.

A criação de uma plataforma com os objetivos acima discriminados não é inédita.

No domínio específico do desporto, a Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas, assinada e ratificada por Portugal e em vigor desde 1 de setembro de 2019, estabelece a obrigação da identificação, por cada Estado, de uma plataforma nacional destinada ao tratamento da manipulação de competições desportivas.

Esta plataforma deverá, nomeadamente, em conformidade com o direito interno, funcionar como um centro de informação, recolhendo e transmitindo às organizações e autoridades competentes informações pertinentes para a luta contra a manipulação de competições desportivas; coordenar a luta contra a manipulação de competições desportivas; receber, centralizar e analisar informações sobre apostas irregulares e suspeitas em competições desportivas realizadas no território nacional e, se for caso disso, emitir alertas; transmitir informações sobre eventuais violações da lei ou da legislação desportiva às autoridades públicas ou às organizações desportivas e/ou aos operadores de apostas desportivas; e cooperar com todas as organizações e autoridades competentes, a nível nacional e internacional, incluindo com as plataformas nacionais dos outros Estados.

A plataforma deverá ainda assegurar a criação de condições para que os denunciantes possam reportar em segurança.

A formalização desta plataforma deverá envolver as áreas governativas e as entidades públicas e privadas relevantes no âmbito do desporto, das apostas desportivas e da prevenção, deteção e sancionamento da manipulação de competições desportivas.

É desejável a implementação e/ou o reforço de mecanismos de articulação e a criação de canais de comunicação privilegiados entre instituições que partilhem necessidades de informação ou interesses específicos, o que se verifica, designadamente, entre áreas inspetivas setoriais (inspeções-gerais e entidades equiparadas e inspeções regionais), a AT e a UNCC da PJ.

Podendo beneficiar da descrita articulação e das estratégias desenvolvidas e instituídas pelas referidas entidades, deverão ainda ser responsabilizadas as entidades reguladoras, as associações públicas profissionais e outras entidades competentes em determinados setores de atividade, pela imposição de medidas adicionais aos setores por si tutelados, promovendo boas práticas em setores como o financeiro, da construção, desportivo e dos serviços públicos essenciais.

Garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção, melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição

Apesar de Portugal ter vindo a adotar, sucessivamente, ampla legislação penal e processual penal para prevenir e reprimir fenómenos corruptivos, importa introduzir alguns ajustamentos com o objetivo de garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme dos mecanismos legais em matéria de repressão da corrupção, melhorar o tempo de resposta do sistema judicial e assegurar a adequação e efetividade da punição.

A dispersão de diplomas sobre temas conexos não favorece uma leitura sistémica nem consente o melhor aproveitamento dos instrumentos legais disponíveis.

As sucessivas intervenções que foram sendo feitas nem sempre permitiram assegurar a harmonia e coerência interna do sistema de repressão.

As iniciativas que seguidamente se descrevem têm por escopo melhorar a qualidade da legislação no plano repressivo, facilitando o esclarecimento do crime e a realização de justiça em prazo razoável e reduzindo os espaços de impunidade.

1 – Unificação e uniformização de normas, compilação de legislação, atualização e uniformização de conceitos legais, avaliação do impacto normativo

É necessário empreender um trabalho de revisão dos vários diplomas que têm por objeto a repressão da corrupção e criminalidade conexa (como a Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, e a Lei n.º 19/2008, de 21 de abril), preferencialmente agregando num único diploma as soluções ali previstas, o que facilita o trabalho de pesquisa, interpretação e aplicação da lei.

Em matéria de prescrição do procedimento criminal, verifica-se que, em alguns casos, a alínea a) do n.º 1 do artigo 118.º do Código Penal contempla apenas as modalidades do crime previstas nesse Código, deixando incoerentemente de fora aquelas previstas em legislação especial. O prazo de 15 anos de prescrição do procedimento criminal deve estender-se também aos crimes previstos no artigo 20.º, no n.º 1 do artigo 23.º e nos artigos 26.º e 27.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho (peculato, participação económica em negócio, abuso de poderes e violação de segredo), nos artigos 10.º-A e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto (oferta ou recebimento indevido de vantagem), nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar (corrupção passiva para a prática de ato ilícito e corrupção ativa) e no artigo 299.º do Código Penal, quando a finalidade ou atividade da associação criminosa seja dirigida à prática de um ou mais crimes relativamente aos quais se prevê excecionalmente um prazo de 15 anos.

Importará ainda refletir sobre a inclusão do artigo 11.º (prevaricação) da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, entre aqueles crimes.

Considerando a evolução verificada ao nível do setor público empresarial, da justiça militar e do conceito de titular de alto cargo público, importa rever o disposto no artigo 386.º do Código Penal, respeitante ao conceito de funcionário, para melhor cumprimento das exigências postas pelo princípio da legalidade criminal.

O conceito de funcionário constante do artigo 386.º tem vindo a ser alterado desde 1995 (2001, 2007, 2010 e 2015). Continua, porém, a justificar-se uma revisão do conceito, como vem assinalando a doutrina e a jurisprudência. Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a matéria por via do Acórdão n.º 3/2020, de 18 de maio.

Em matéria de perda de produtos e vantagens de facto ilícito típico e perda alargada de bens, importa colmatar a lacuna consistente na inexistência de normas de natureza processual para os casos de perda de bens sem condenação (n.º 5 do artigo 110.º do Código Penal), por ser manifesta a insuficiência do n.º 5 do artigo 335.º do Código de Processo Penal.

Deve proceder-se, de forma sistemática, a avaliações ex post de impacto legislativo, por só desta forma poderem ser convenientemente sustentadas alterações legislativas subsequentes, particularmente quando seja ainda curto o tempo de vigência das leis inovadoras.

Nem sempre os resultados menos satisfatórios das leis são imputáveis às leis em si, como mostra o que a seguir se destaca.

No que à perda de produtos e vantagens de facto ilícito típico respeita, a criação, pela Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, e posterior instalação do GRA e do Gabinete de Administração de Bens (GAB), não esgotando as possibilidades de atuação dos magistrados do Ministério Público no âmbito da perda de bens, constitui-se como um instrumento de extrema importância neste domínio. No entanto e apesar do reconhecimento unânime dos efeitos preventivos, especiais e gerais, destas soluções, no que à criminalidade económico-financeira diz respeito, verifica-se que o recurso a estes instrumentos por parte dos magistrados é ainda bastante desigual, nomeadamente por referência a determinadas zonas do País, sugerindo estes dados a falta de prática ou sensibilização para a sua utilização.

Assim, segundo dados da PGR, durante o ano de 2019 foi solicitada a intervenção do GRA em 112 casos (12 na região de Lisboa, 68 na região do Porto, 14 na região de Coimbra, 11 na REGIÃO de Évora e 7 no DCIAP).

As 112 intervenções do GRA, a nível nacional, respeitaram predominantemente a infrações fiscais (25), a crimes de tráfico de estupefacientes (23), abuso de confiança qualificada e contra a segurança social (17), burla (12), branqueamento (10), peculato (9), corrupção (8), tráfico de pessoas (6), fraude na obtenção de subsídio (3), insolvência dolosa (3) e lenocínio e outras infrações sexuais (3), para além de casos de administração danosa, associação criminosa, contrabando, falsificação, crimes informáticos, tráfico de veículos, furto qualificado ou auxílio à imigração ilegal.

Foram apreendidos ou arrestados bens e valores no montante total de (euro) 28 610 373,60, tendo o Ministério Público, nas acusações/liquidações elaboradas, requerido a reposição de vantagens patrimoniais resultantes da prática de crimes na importância de (euro) 36 940 739,91.

Foi solicitada a intervenção do GAB em 90 situações (12 na região de Lisboa, 51 na região do Porto, 15 na região de Coimbra, 10 na região de Évora e 2 no DCIAP). O valor global dos bens entregues foi de (euro) 19 221 167,00.

O Gabinete de Acompanhamento de Projetos da PGR promoveu uma candidatura ao Fundo de Segurança Interna para promoção de um projeto de formação e capacitação dos magistrados do Ministério Público na área de recuperação de ativos nos processos criminais, com especial enfoque na utilização prática dos instrumentos legais específicos para o efeito, incluindo igualmente a vertente de cooperação judiciária internacional para identificação, apreensão e recuperação de ativos colocados noutro Estado.

2 – Dispensa de pena, atenuação da pena e suspensão provisória do processo

A complexidade da criminalidade económico-financeira, as dificuldades inerentes à sua investigação, a necessidade de recorrer a meios de investigação mais eficazes, bem como as suas consequências na vida dos cidadãos, nas finanças do Estado e na economia, justificam que o Estado, enquanto legislador, dispense ou atenue a pena do arguido que denuncie o crime ou colabore ativamente para a descoberta da verdade, ou admita a suspensão provisória do processo quanto ao crime de corrupção ativa.

Com efeito, a concessão de um tratamento penal menos severo – nomeadamente, com a atenuação especial da pena, com a dispensa de pena ou mesmo com a suspensão provisória do processo – tem já inscrição em institutos vigentes na ordem jurídica nacional. Assim acontece, presentemente, no Código Penal e em legislação avulsa para determinados crimes, designadamente quanto ao crime de corrupção e outros com o mesmo conexos.

No direito vigente há, porém, razões para introduzir alterações que têm em conta a necessidade de garantir uma aplicação mais eficaz e uniforme do denominado «direito premial» em matéria de corrupção, superando entraves injustificados à aplicação do respetivo regime jurídico, assim como certas incorreções que vêm sendo apontadas pela doutrina.

Os arguidos que resolvam quebrar o pacto corruptivo veem a sua pena dispensada quando denunciem o crime antes da instauração do procedimento criminal. Se, após a instauração do procedimento criminal, contribuírem decisivamente para a descoberta da verdade na fase de inquérito ou instrução, a pena pode ser dispensada. A pena é especialmente atenuada se os arguidos colaborarem ativamente na descoberta da verdade até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, contribuindo de forma relevante para a prova da sua responsabilidade ou para a prova da responsabilidade de outros.

Dispensa de pena e atenuação especial da pena

Os regimes de dispensa e atenuação especial da pena, em matéria de corrupção de funcionários, de corrupção de titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos, de corrupção de agentes desportivos e de corrupção no comércio internacional e no setor privado devem ser uniformizados, harmonizando-se também o Código Penal com a legislação extravagante.

Quanto à dispensa de pena, deve impedir-se a sua aplicação quando há mera omissão da prática do ato mercadejado, exigindo-se sempre a colaboração do agente do crime, não limitada pelo «prazo máximo de 30 dias após a prática do ato».

Deve prever-se um regime diferenciado para a corrupção para ato ou omissão ilícitos: nas hipóteses de corrupção para ato ou omissão ilícitos, a dispensa de pena só deve ser admissível se o ato ou omissão contrários aos deveres do cargo não tiver ainda sido praticado; nas restantes hipóteses, pode haver dispensa de pena mesmo que o ato ou omissão não contrários aos deveres do cargo tenha sido praticado ou tenha havido recebimento ou oferta indevidos de vantagem.

Caso o agente denuncie o crime em todos os seus contornos antes da instauração do procedimento criminal, a dispensa deve tornar-se obrigatória, havendo sempre intervenção de juiz, de instrução ou julgamento, na verificação dos seus pressupostos.

Se o agente colaborar decisivamente para a descoberta da verdade durante a fase de inquérito ou instrução, mesmo que não tenha denunciado o crime antes da instauração de procedimento criminal, a dispensa de pena pode admitir-se caso se verifiquem os pressupostos das alíneas a), b), e c) do n.º 1 do artigo 74.º do Código Penal.

Se os pressupostos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 74.º do Código Penal estiverem verificados, mesmo nos casos em que a dispensa de pena é obrigatória, pode haver lugar ao arquivamento em caso de dispensa de pena, conforme previsto no artigo 280.º do Código de Processo Penal de contrário, é no julgamento que o arguido deve ser dispensado de pena.

A dispensa de pena deve igualmente abranger os crimes que, não sendo cometidos contra bens eminentemente pessoais, sejam efeito dos crimes de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção, ou que se tenham destinado a continuar ou a ocultar estes crimes ou as vantagens dos mesmos provenientes, desde que o agente os tenha denunciado ou tenha contribuído decisivamente para a sua descoberta.

A decisão judicial que decrete a dispensa de pena é uma sentença condenatória, de acordo com o n.º 3 do artigo 375.º do Código de Processo Penal, pelo que não ficam prejudicados o regime da perda alargada de bens (artigo 12.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro), a possibilidade de aplicar penas acessórias ou os efeitos da pena.

A pena é especialmente atenuada se os arguidos colaborarem ativamente na descoberta da verdade até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, contribuindo de forma relevante para a prova da sua responsabilidade ou para a prova da responsabilidade de outros.

Suspensão provisória do processo

Deve alargar-se a aplicação do instituto aos crimes de oferta indevida de vantagem, e tornar-se admissível a sua utilização na fase de instrução. A incorporação da oferta indevida de vantagem inscreve-se numa lógica de igualização de tratamento relativamente à corrupção ativa, considerando a similitude dos dois tipos legais.

Por outro lado, deve deixar-se claro que é oponível à arguida que seja pessoa coletiva ou entidade equiparada a injunção de adotar ou implementar programas de cumprimento normativo adequados a prevenir a prática de crimes de recebimento ou oferta indevidos de vantagem ou de corrupção.

As decisões relativas à suspensão provisória do processo, neste tipo de criminalidade, devem ser publicitadas nas bases de dados jurídicos do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.

Devem ser igualmente publicitadas as decisões judiciais que, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 268.º do Código de Processo Penal, declarem a perda a favor do Estado de bens apreendidos.

3 – Pena acessória de proibição do exercício de função

A adequação e efetividade da punição dos crimes de corrupção implica que o regime da proibição do exercício de função, previsto no artigo 66.º do Código Penal, seja alterado no sentido da elevação do limite máximo do período de proibição do exercício de função, que poderá ir até 10 anos, e da proibição do exercício de funções aplicada a gerente ou administrador de sociedade comercial condenado por crime de oferta indevida de vantagens ou de corrupção por um período entre 2 e 10 anos.

4 – Crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos e de titulares de altos cargos públicos

A Lei dos Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos (Lei n.º 34/87, de 16 de julho) existe em cumprimento do n.º 3 do artigo 117.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual «a lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares dos cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respetivos efeitos».

O sentido desta imposição constitucional não é compatível com a opção tomada em 2010 de incluir os titulares de altos cargos públicos na Lei dos Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos.

Considerando a génese e razão de ser da Lei dos Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos e a necessidade de afastar dúvidas jurídicas suscitadas pela alteração de 2010, transfere-se a referência a «titulares de altos cargos públicos» daquela lei para o Código Penal, mantendo-se, contudo, a moldura penal agravada.

Responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas por crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos

O artigo 11.º do Código Penal, na redação dada em 2007, passou a responsabilizar criminalmente as pessoas coletivas pela prática de crimes de corrupção previstos no Código Penal. A esta responsabilização não correspondeu, porém, a responsabilização pela prática de crimes de corrupção de titulares de cargos políticos. Esta lacuna tem de ser colmatada com o aditamento de um novo artigo à Lei n.º 34/87, de 16 de julho (artigo 6.º-A), de onde decorra a responsabilidade penal de pessoas coletivas e entidades equiparadas pela prática de crime de corrupção ativa (n.os 1 e 2 do artigo 18.º) e de oferta indevida de vantagem (n.º 2 do artigo 16.º).

Penas acessórias aplicáveis a titulares de cargos políticos

O Código Penal prevê a possibilidade de aplicação de uma pena acessória juntamente com a pena principal ou de substituição relativamente aos crimes de corrupção e análogos praticados por titulares de cargos públicos, funcionários públicos e agentes administrativos. No entanto, essa possibilidade não está prevista para os titulares de cargos políticos, os quais estão abrangidos por legislação especial. Em nome da eficácia preventiva geral e especial o titular de cargo político passa a ser também incapacitado para ser eleito ou nomeado para cargo político por um período idêntico ao proposto para aqueles funcionários e agentes, nos termos previstos no Código Penal.

5 – Responsabilidade penal das pessoas coletivas e entidades equiparadas

Urge prever normas de natureza processual penal específicas em matéria de responsabilidade penal das pessoas coletivas e entidades equiparadas, considerando, nomeadamente, a relevância substantiva e processual dos programas de cumprimento normativo.

Uniformização e autonomização de regimes

Sendo político-criminalmente desejável que o regime geral da responsabilidade penal das pessoas coletivas e equiparadas seja o previsto no Código Penal, deve proceder-se à uniformização de regimes, já que na sequência das alterações introduzidas em 2007 nem todas as normas da legislação extravagante foram alteradas no sentido das regras gerais previstas no artigo 11.º do Código. Constituem disso exemplo os artigos 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro (infrações económicas e contra a saúde pública), e 7.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (Regime Geral das Infrações Tributárias).

É também político-criminalmente desejável que o Código Penal contenha o regime geral das penas aplicáveis às pessoas coletivas e equiparadas. Devem por isso ser revistas as penas previstas em legislação extravagante, por não serem coerentes com as previstas no Código Penal, segundo a tripartição entre penas principais, acessórias e de substituição. Constituem exemplos de falta de coerência com o regime geral o artigo 7.º e a alínea b) do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, e a alínea h) do artigo 16.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho.

Relevância substantiva dos programas de cumprimento normativo

Sem alterar o disposto no artigo 11.º do Código Penal quanto ao modelo de imputação do facto à pessoa coletiva, deve ser dada relevância substantiva aos programas de cumprimento normativo ao nível da determinação da pena em sentido amplo, à semelhança do que sucede em diversos ordenamentos jurídicos (espanhol, francês, argentino e chileno, italiano e brasileiro, no âmbito da responsabilidade administrativa das pessoas coletivas). Este entendimento é já o da doutrina portuguesa, que, na falta de normas expressas, sugere os artigos 70.º, 71.º e 72.º do Código Penal para acolherem a relevância de tais programas na determinação da pena da pessoa coletiva e entidade equiparada.

Relativamente à pena principal de multa, deve ser dada relevância à adoção do programa de cumprimento normativo por parte da pessoa coletiva condenada anteriormente à prática do crime, ou depois desta prática e até à audiência de julgamento.

A injunção judiciária, prevista no artigo 90.º-G, deve passar a ser uma pena principal, com uma formulação mais próxima da realidade dos programas de cumprimento normativo, à semelhança do artigo 131-39-2 do Código Penal francês, introduzido em 2016.

A pena de substituição de vigilância judiciária, prevista no artigo 90.º-E, deve servir o objetivo de fiscalizar o cumprimento efetivo de um programa de cumprimento normativo. Pode equacionar-se a passagem desta pena a pena principal.

6 – Código das Sociedades Comerciais

O Código das Sociedades Comerciais deve ser alterado no sentido de ser refletida a obrigatoriedade de adoção de programas de cumprimento normativo, no que se refere às empresas de média e grande dimensão. Tais programas são simultaneamente instrumentos de prevenção e de repressão da corrupção.

É irrecusável a relevância direta de algumas disposições penais que integram o Código das Sociedades Comerciais em matéria de corrupção, nomeadamente as que se referem aos crimes de aquisição ilícita de quotas ou ações (artigo 510.º) e de informações falsas (artigo 519.º), os quais são punidos, porém, com penas manifestamente irrisórias. Esta é, de resto, uma crítica que é feita, em geral, às penas previstas para os crimes tipificados neste Código, a par de outras a justificar uma intervenção corretiva. A este propósito, assinala-se a não criminalização de comportamentos como a escrituração fraudulenta, de grande relevância instrumental em matéria de criminalidade económico-financeira.

7 – «Megaprocessos»

A experiência e os conhecimentos adquiridos nos últimos anos na investigação criminal, designadamente pelo Ministério Público e pela PJ, permitem hoje, sem grandes obstáculos, estabelecer o caminho do crime.

No entanto, apesar da cada vez maior preparação, especialização e capacitação investigatória relativamente a este tipo de criminalidade, a verdade é que nestes processos-crime é frequente verificarem-se atrasos muito grandes, quer na fase de investigação, quer já na fase do julgamento.

A morosidade na resolução destes casos é socialmente insuportável, leva à menor confiança dos cidadãos na justiça, na política e nas diversas instituições do Estado. Além de que o efeito preventivo da punição depende em maior medida da prontidão da justiça do que da severidade das penas. Acresce ainda que o passar do tempo e os efeitos deste na prova recolhida reduzem significativamente a probabilidade de se alcançarem, a final, bons resultados, o que conduz, necessariamente, à frustração de todos os envolvidos na boa prossecução destes processos, incluindo os cidadãos.

Regras de conexão e separação de processos

O Código de Processo Penal contém já normas que permitem reduzir a dimensão dos chamados «megaprocessos», o que não quer dizer que o legislador não possa aperfeiçoar o regime estabelecido para a conexão e separação de processos de forma a deixar mais claras as situações em que tal pode acontecer.

O artigo 30.º do Código de Processo Penal prevê a separação de processos, nomeadamente quando «a conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado» e quando «a conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos» [alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo Penal], o que poderá ocorrer nas situações em que a conexão leva a que sejam ultrapassados os prazos previstos para as diferentes fases processuais.

Com o intuito de clarificar esta matéria, propõe-se alterar o artigo 24.º do Código de Processo Penal, estabelecendo expressamente a possibilidade de o tribunal não ordenar a conexão quando preveja, por efeito desta, a ultrapassagem dos prazos de duração máxima da instrução. Intervenção semelhante deve ser feita no artigo 264.º do Código de Processo Penal, prevendo-se a possibilidade de o Ministério Público não ordenar a conexão quando preveja que esta leve ao não cumprimento dos prazos de duração máxima do inquérito.

Simplificar a produção e a apresentação da prova nas várias fases processuais

Integrada no Sistema de Informação Criminal do Ministério Público – SIC-MP – a PGR tem em curso de desenvolvimento a plataforma informática de gestão do inquérito – ProMP – com funcionalidades que permitem a gravação áudio e vídeo dos atos processuais praticados no inquérito.

O sistema de tramitação eletrónica de processos – MP-Codex -, privativo do Ministério Público, em construção, e a nova interface do sistema CITIUS para magistrados judiciais – MAGISTRATUS -, em fase adiantada de desenvolvimento, têm funcionalidades que facilitam não só a gravação de atos processuais, em registo vídeo e áudio, como também a referenciação, o tratamento, a organização e a apresentação da prova em audiência, em processos de maior complexidade.

A PGR adquiriu o direito a utilizar a aplicação SIIP, já utilizada com sucesso em casos complexos, aplicação que, com base na prova digitalizada, permite a sua gestão, organização e associação, assegurando um mais rápido acesso, interligação e apresentação em instrução e em julgamento.

Os projetos em curso foram cofinanciados pelo Fundo de Modernização da Justiça e pelo Fundo de Segurança Interna. A possibilidade de acesso a verbas disponibilizadas no Mecanismo de Resolução e Resiliência, no quadro da transição digital, permitirá acelerar a conclusão dos procedimentos.

O Tribunal Central de Instrução Criminal

O Tribunal Central de Instrução Criminal é, por excelência, aquele em que se concentram uma boa parte dos designados «megaprocessos».

A sua atual configuração, com dois juízes, é indutora de um menor grau de aleatoriedade na distribuição de processos e geradora de uma perceção pública de personalização nos métodos e nas decisões, o que é contrário à imagem de objetividade da justiça. Essa perceção é agravada pela circunstância de os processos que ali correm terem um grau de mediatização acrescido, pela gravidade dos factos, por a sua prática envolver uma atuação criminosa com extensão a territórios diferentes, no plano nacional ou pelo seu caráter transnacional e, amiúde, pelo posicionamento social e/ou institucional dos seus agentes.

Importa, por isso, identificar uma solução que, respeitando a diferenciação do tribunal e a sua competência nacional, permita ultrapassar os constrangimentos identificados.

O aumento do número de magistrados afetos à realização das missões do Tribunal Central de Instrução Criminal é a solução consensualmente apontada.

Impõe-se, pois, reponderar a composição do Tribunal.

Audiência prévia para agendamento processual

Apesar de todas as medidas legislativas e de gestão processual que possam ser adotadas, nem sempre é possível evitar que os processos atinjam grandes dimensões.

Nestes casos, quando tais processos chegam à fase de instrução ou de julgamento, será necessário, por parte do juiz de instrução ou do juiz de julgamento, efetuar um complexo agendamento dos atos processuais a realizar. Tal agendamento é posteriormente notificado aos diferentes – e muitas vezes numerosos – intervenientes processuais. Sendo logo feito o agendamento de diversas datas, antecipam-se e previnem-se as situações de incompatibilidades e impossibilidades de agenda entre os vários intervenientes, e favorece-se a realização contínua da audiência.

Embora o agendamento processual consensualizado com os intervenientes processuais não esteja excluído pela nossa lei processual penal, deve prever-se expressamente a possibilidade de realização de tal agendamento no Código de Processo Penal para o debate instrutório e para a audiência de julgamento.

8 – Métodos de investigação

São conhecidas as dificuldades de recolha de prova quando está em causa a investigação da corrupção e outra criminalidade com a mesma conexa e, em geral, a criminalidade económico-financeira e empresarial. Nestes processos, os meios de prova têm uma forte componente documental, o que, a par da necessidade frequente de realização de perícias financeiras e informáticas e a posterior análise de todos estes elementos, também contribui para a demora na conclusão dos inquéritos.

Reconhece-se que foi feito um grande esforço na adoção de medidas destinadas a dotar a investigação de mais recursos e capacitação através, nomeadamente, do recurso a prova produzida em investigações internas, a ações encobertas, a quebra do sigilo bancário e fiscal e a buscas e pesquisas em ambiente digital.

Tal como já foi referido, no âmbito da investigação criminal o Ministério Público tem hoje acesso direto e em linha a um relevante conjunto de informações disponíveis em bases de dados da Administração, como as da identificação civil e criminal, da administração tributária, dos registos comercial, predial e automóvel ou do registo central do beneficiário efetivo.

O acesso aos elementos constantes da base de dados de contas bancárias do Banco de Portugal é também hoje possível quer através de pedido fundamentado pelas autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal, quer de forma direta, imediata e não filtrada pela UIF e pelo DCIAP, no âmbito das suas atribuições no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

Quanto a esta matéria, encontram-se em curso os trabalhos de transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva (UE) n.º 2019/1153 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, que estabelece normas destinadas a facilitar a utilização de informações financeiras e de outro tipo para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de determinadas infrações penais.

A mencionada diretiva estabelece medidas destinadas a facilitar o acesso e a utilização de informações financeiras e de informações sobre contas bancárias, designadamente as constantes da base de dados de contas bancárias do Banco de Portugal, pelas autoridades competentes para os efeitos da prevenção, da deteção, da investigação e da repressão de infrações penais graves, nas quais se deverá incluir a criminalidade económico-financeira.

A obrigatoriedade de adoção de programas de cumprimento normativo pelas empresas de média e grande dimensão facilitará também certamente a investigação criminal, por via da prova que poderá ser produzida em sede de investigações internas (prova produzida na empresa e pela empresa, sem as dificuldades de acesso de quem tem de a produzir de fora).

Importa ainda revisitar a Lei do Cibercrime, no sentido de regular mais adequadamente métodos de investigação em ambiente digital, nomeadamente buscas online, salvaguardando sempre que tais métodos deverão necessariamente obedecer às exigências da Constituição relativas à proteção dos direitos individuais.

Encontramos exemplos recentes destes novos meios de obtenção da prova no direito espanhol (artigo 588 septies a da Ley de Enjuiciamiento Criminal, integrado no capítulo «registros remotos sobre equipos informáticos») e no direito alemão [§§ 100a (Telekommunikationsüberwachung) e 100b (Online-Durchsuchung) do Strafprozessordnung].

9 – Canais de denúncia e mecanismos de proteção adequada dos denunciantes

Os fenómenos corruptivos caracterizam-se pela sua invisibilidade ou opacidade, existindo inúmeros obstáculos à investigação, os quais se consubstanciam em soluções que permitem apagar o seu «rasto».

Para facilitar a aquisição da notícia do crime neste tipo de criminalidade, em que não existe uma vítima concretamente determinada e em que são frequentes os «pactos de silêncio», a denúncia passou a ser um instrumento autónomo de política criminal contra a criminalidade empresarial em geral, e contra a corrupção em particular. No presente, surge também enquadrada nos programas de cumprimento normativo, por ser uma das suas características integrantes, a institucionalização de um canal de denúncias. Num caso e no outro, uma das formas de não desincentivar a denúncia, promovendo os valores da transparência e da integridade, reside no assegurar da adequada proteção dos denunciantes, sendo inegável a sua contribuição para a efetiva aplicação do direito e, nessa medida, para o reforço do Estado de Direito.

A importância da proteção dos denunciantes encontra-se já reconhecida na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, referindo o seu artigo 33.º (Proteção das pessoas que dão informações) que «cada Estado Parte deverá considerar a incorporação no seu sistema jurídico interno de medidas adequadas para assegurar a proteção contra qualquer tratamento injustificado de quem preste, às autoridades competentes, de boa fé e com base em suspeitas razoáveis, informações sobre quaisquer factos relativos às infrações estabelecidas em conformidade com a presente Convenção».

No Jornal Oficial da União Europeia de 26 de novembro de 2019, foi publicada a já referida Diretiva (UE) 2019/1937. Esta diretiva estabelece normas mínimas comuns para um nível elevado de proteção dessas pessoas, devendo ser transposta até 17 de dezembro de 2021. Encontram-se em curso os trabalhos de transposição.

No ordenamento jurídico português existem já normas dispersas sobre denunciantes, nomeadamente as previstas na Lei n.º 93/99, de 14 de julho (proteção de testemunhas), na Lei n.º 19/2008, de 21 de abril (no artigo 4.º), no âmbito do combate à corrupção, na Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto (no n.º 5 do artigo 108.º), no âmbito do combate ao branqueamento de capitais e ao terrorismo, ou no Código dos Valores Mobiliários, no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras e no Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo. Existe, no entanto, a necessidade de articular e compatibilizar tais normas, designadamente através de um diploma que estabeleça o regime jurídico de proteção dos denunciantes.

A PGR tem um sistema de denúncia eletrónica, localizado no seu website, com a designação «Corrupção: Denuncie aqui». Este serviço é um recetor de denúncias relativas a corrupção e crimes conexos que sejam praticados no âmbito de atividades de serviços públicos ou privados. É fornecida a cada denunciante uma chave de acesso eletrónica que permite «aceder à sua comunicação e tomar conhecimento da investigação e outros dados que lhe interessam». O denunciante pode ser chamado a prestar colaboração para esclarecimento de dúvidas ou para a transmissão de «informação adicional». Através desta chave de acesso, o denunciante pode consultar o estado do processo e obter informações acerca do mesmo, nomeadamente sobre a abertura do inquérito, o seu arquivamento, a constituição de arguidos, etc.

Este portal tem constituído um importante meio para aquisição de notícias de crime, como resulta dos dados relativos ao número de denúncias apresentadas e ao número de inquéritos e de ações de prevenção instauradas – sempre se salvaguardando que uma percentagem relevante de tais denúncias corresponde a situações insuscetíveis de configurar notícia de crime.

Segundo os dados recolhidos pela PGR, em 2019, o número de denúncias recebidas, nomeadamente através deste sistema de denúncias eletrónicas, foi de 1966, das quais 695 foram apresentadas por denunciantes identificados (35,4 %). A sua análise deu lugar à instauração de 249 inquéritos e de 31 averiguações preventivas, tendo sido remetidas 787 denúncias a outras entidades e arquivadas 896. Comparando o ano de 2019 com os dois anos anteriores, verifica-se uma diminuição nas denúncias entradas (menos 20,7 % que em 2018 e menos 1,2 % que em 2017). No ano de 2019 o número de inquéritos instaurados correspondeu a 12,7 % das denúncias registadas e as averiguações preventivas a cerca de 1,6 %, percentagens respetivamente igual e ligeiramente inferior às registadas em 2018 (12,7 % e 1,8 %), e em ambos os casos superiores às registadas em 2017 (9,1 % e 1,3 %, respetivamente), variações que se mostram coerentes com a variação do número de denúncias apresentadas em cada ano.

Um outro exemplo que se pode citar resulta do trabalho desenvolvido entre a PJ, a União das Associações Europeias de Futebol e a Sportradar, no âmbito do qual foi criada a plataforma de denúncias da Federação Portuguesa de Futebol, na «Área da Integridade» do website da mesma, a qual permite a apresentação de denúncias (com possibilidade de anonimato), reportando casos de corrupção desportiva e de manipulação de resultados (match fixing).

10 – Acordo sobre a pena aplicável

Como solução possível aos entraves à celeridade e à eficiência na resolução de certo tipo de processos-crime, a doutrina e a jurisprudência têm-se debruçado sobre o tema da «justiça negociada», sendo esta uma tendência irreversível da justiça penal em alguns países.

Entre nós, o ponto de partida desta discussão foi dado por Figueiredo Dias, primeiro em conferências e depois em trabalho publicado em 2011 (Acordos sobre a Sentença em Processo Penal – O «Fim» do Estado de Direito ou Um Novo «Princípio»?), tendo inclusive alguns tribunais portugueses avançado pelo caminho dos acordos sobre sentenças penais, apoiando-se essencialmente na obra referida, em disposições do nosso Código Processual Penal e em orientações do Ministério Público a nível distrital.

Uma alteração ao Código de Processo Penal no sentido de prever a possibilidade de celebração de um acordo sobre a pena aplicável, na fase de julgamento, assente na confissão livre, integral e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime imputado, constitui uma opção que devemos acompanhar. O acordo deverá incidir sobre a questão da sanção e não sobre a questão da culpabilidade, e não prejudica a perda de bens, o que tem especial relevância preventiva na criminalidade em que há que combater o lucro ilícito.

Os objetivos da celebração do acordo deverão centrar-se, fundamentalmente, na economia e celeridade processuais, dispensando a prova relativa aos factos imputados e dando como provados os confessados, com passagem imediata à produção da prova relevante para a determinação da pena. Ou seja, deverá ficar afastada uma configuração do instituto que premeie, através da redução da pena aplicável, quem colabore responsabilizando outro ou outros arguidos.

11 – Meios humanos e técnicos

Importa reconhecer o esforço que tem sido feito ao longo dos anos para melhorar a capacidade da investigação criminal no plano dos recursos humanos e do acesso à informação. Refira-se, a título de exemplo, o apetrechamento da unidade da PJ vocacionada para investigar a criminalidade informática e em ambiente informático; o acesso direto das autoridades judiciárias a um relevante conjunto de informação em bases de dados públicas, nomeadamente na AT; a implementação da base de dados do registo central do beneficiário efetivo; a melhoria da atividade de recuperação de ativos decorrentes do crime, simplificando procedimentos e rentabilizando a administração e gestão dos bens apreendidos.

Nos últimos anos, tem-se registado um esforço para colmatar o défice de recursos humanos, através da regularização do recrutamento anual de magistrados para o Ministério Público e da abertura de concursos de recrutamento para a PJ.

O acabado de dizer não dispensa a necessidade de manter o esforço de investimento nos meios humanos e técnicos, nomeadamente através da formação especializada e da implementação de determinadas ferramentas informáticas.

Em matéria de criminalidade que implique técnicas de investigação específicas e recurso a meios de polícia científica, a PJ deve concentrar as capacidades adequadas às necessidades de resposta que se possam sentir.

A reorganização dos serviços da PJ operada em 2019 garante o modelo de polícia mais moderno e adaptado às novas exigências do crime.

É indispensável dar uma atenção particular à UPFC, assim como à UNC3T, unidade vocacionada para tratar o crime informático e o crime praticado com recurso a meios informáticos, metodologia correntemente utilizada na criminalidade económico-financeira e noutras formas de criminalidade.

Em domínios muito exigentes e específicos, como a contratação pública, as parcerias público-privadas, a fraude na obtenção de subsídio ou subvenção ou a evasão fiscal, apenas a competência especializada dos diversos intervenientes e a construção de uma rede integrada de cooperação entre entidades permitirá melhorar os resultados das investigações e tornar mais eficientes e eficazes as diferentes intervenções.

A evidente sobrecarga com que se confrontavam as unidades com funções de perícia na área económico-financeira e contabilística está a ser superada pelo reforço de meios humanos. Importa constituir centros de competência e estabelecer redes de conhecimento, integrando peritos e especialistas do sistema de controlo interno da administração financeira do Estado, do Núcleo de Assessoria Técnica da PGR e da UPFC. Mas, para além disso, impõe-se um reforço da formação de magistrados e de mais intervenientes na investigação criminal, dotando-os de conhecimentos básicos que lhes permitam apreender o significado das realidades mais comuns com que se deparam no universo da criminalidade económico-financeira.

A utilização de ferramentas informáticas, como o CITIUS, que vieram facilitar e reduzir os custos das comunicações entre sujeitos processuais, permitiu uma tramitação mais eficiente dos processos. Há que investir agora em outras soluções informáticas, com capacidades analíticas e de tratamento da informação, que facilitem a compreensão e apreensão do conteúdo dos processos-crime. As novas interfaces dos sistemas de tramitação processual dos magistrados, as aplicações Magistratus e MP Codex, em fase adiantada de desenvolvimento, integram estas funcionalidades. O recurso a este tipo de ferramentas constitui uma inevitabilidade se se pretende colocar a tecnologia ao serviço da simplificação da atividade dos tribunais e do Ministério Público.

Produzir e divulgar periodicamente informação fiável sobre o fenómeno da corrupção

A produção periódica de informação rigorosa e detalhada sobre a atividade preventiva, sobre as denúncias feitas e as investigações iniciadas, bem como sobre o desfecho das investigações e as dificuldades experimentadas no seu decurso, constitui uma ferramenta eficaz para fortalecer o combate à corrupção e aproximar as perceções da realidade. De facto, a experiência mostra-nos que a ocorrência de um caso de corrupção mais mediático molda a perceção pública da abrangência do fenómeno. A maior demora na resolução de um caso mais complexo influencia a perceção sobre o tempo de resposta global das instâncias formais de controle. A identificação das áreas de maior ocorrência de fenómenos corruptivos permite orientar melhor a atividade preventiva, racionalizando a alocação dos meios disponíveis e aumentando o nível de eficácia do sistema. A obtenção, análise e tratamento de dados que permitam compreender, em termos globais e com a maior aproximação possível, os contornos destes crimes e a eficácia da sua investigação e punição são centrais para o conhecimento da realidade.

Só conhecendo se pode agir bem

Dados sobre a forma como se iniciam inquéritos-crime, o tipo de denunciantes, os meios de prova utilizados, o tempo médio de duração de cada uma das fases do processo, a percentagem dos processos que findam com despachos de arquivamento e dos que são levados a julgamento, dos que findam com condenações e com absolvições, as grandes áreas da Administração mais atingidas por este tipo de fenómenos com identificação de setores de atividade ou áreas de regulação, graus de hierarquia dos agentes e natureza dos poderes exercidos, as fragilidades organizacionais associadas e os montantes envolvidos são cruciais à composição de um retrato da corrupção, devendo ser inscritos nestas análises. E o mesmo se diga de informação que permita traçar perfis genéricos dos corruptores e corrompidos.

Toda esta informação, adequadamente tratada, deve ser fácil e publicamente acessível, salvaguardando-se sempre o anonimato dos visados. Deste modo, permite-se uma visão mais abrangente sobre o problema por parte dos responsáveis políticos e administrativos, e um maior escrutínio pelos cidadãos relativamente às opções tomadas.

A existência e disponibilidade da informação fomenta e favorece o surgimento de pesquisas, estudos e análises mais rigorosas sobre o tema, facilita a metodologia de análise retrospetiva de casos e potencia as vantagens que lhe estão associadas.

Dada a relevância deste tipo de dados, quer para a compreensão do fenómeno e do seu impacto, quer para a formulação de soluções de prevenção, deteção e repressão adaptadas às suas características, é imperioso preservar a adoção de critérios de recolha de informação credíveis, fidedignos e coerentes.

As estatísticas da justiça – uma das áreas das estatísticas oficiais, produzidas pela DGPJ, no âmbito das competências que lhe estão delegadas pelo Instituto Nacional de Estatística, I. P. – integram dados de diversas fontes – na sua maioria de serviços do Ministério da Justiça – organizando-se, tradicionalmente, em quatro áreas temáticas: tribunais, registos e notariado, polícias e organismos de apoio à investigação e outras estatísticas. Os dados tratados pela DGPJ são sempre dados transmitidos por outras entidades, quer seja através do CITIUS ou por outro canal de comunicação estabelecido.

Os dados recolhidos e divulgados pela PGR têm origem nas comunicações efetuadas pelos Departamentos de Investigação e Ação Penal e pelas Procuradorias regionais.

Neste quadro, os dados disponibilizados pelas duas entidades referidas, DGPJ e PGR, refletem diferentes realidades ou perspetivas de análise.

A estas inconsistências, resultantes da ausência de articulação e harmonização de critérios de recolha de informações, acrescem as insuficiências e incorreções que podem resultar do registo e atualização – nas bases de dados e programas informáticos utilizados nos tribunais e demais organismos da justiça – dos dados relevantes respeitantes a cada processo, nomeadamente a indicação correta aquando do início dos inquéritos de todos os crimes em causa, dos elementos de identificação de todos os intervenientes, das datas dos factos ou do local da prática.

Importa também que a informação vá sendo atualizada nas bases de registo dos processos, à medida que se verifiquem alterações ou que surjam novos dados.

Para assegurar a efetivação destes procedimentos, é importante que os órgãos com poderes de direção ou gestão das estruturas que procedem a estes registos – PGR, Conselho Superior da Magistratura, Direção-Geral da Administração da Justiça, PJ – tomem medidas no sentido de garantir o registo correto e a atualização ao longo do inquérito e nas fases subsequentes do processo, dos dados e informações relevantes, estabelecendo diretrizes de execução e fiscalizando a sua concretização.

Por outro lado, considera-se fundamental que o relatório de política criminal que o Procurador-Geral da República apresenta, periodicamente, ao Governo e à Assembleia da República possa especificar dados sobre os mecanismos legalmente existentes no âmbito da repressão da corrupção. A perspetiva da PGR permitirá a avaliação dos mecanismos existentes e o estudo de alterações aos mesmos, se necessário.

Relatório anticorrupção

A par do que se diz acima, deve elaborar-se anualmente um relatório anticorrupção que assegure um conhecimento mais real da extensão dos fenómenos corruptivos, do seu nível de incidência nos vários domínios e da adequação das respostas, auxiliando a formulação de políticas ativas de prevenção e repressão.

Figurará no relatório informação quanto aos crimes registados por autoridades policiais e quanto aos processos findos no Ministério Público e nos tribunais judiciais de 1.ª instância, com a indicação do modo de finalização, informação sobre o número de arguidos condenados, as penas aplicadas e a perda de bens, caso tenha tido lugar. O relatório poderá ainda conter súmulas de factos relativos a infrações ao regime geral da prevenção da corrupção, com indicação da qualidade dos infratores e das sanções aplicadas e aos crimes de corrupção e infrações conexas, que tenham dado origem a condenações já transitadas em julgado, com a necessária anonimização de dados, para além de uma avaliação sobre deficiências e obscuridades legais que dificultem a ação das instâncias formais de controlo.

O tratamento destes dados e a elaboração do relatório deverá ficar a cargo do Mecanismo Anticorrupção.

Cooperar no plano internacional no combate à corrupção

«A corrupção já não é mais um fenómeno local mas transnacional que afeta todas as sociedades e economias, o que torna essencial a cooperação internacional destinada a preveni-lo e controlá-lo», sendo «necessária uma abordagem global e multidisciplinar para prevenir e combater a corrupção de forma eficaz»

Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção

A prática de crimes de corrupção, peculato, tráfico de influência, corrupção no comércio internacional e toda uma panóplia de outros comportamentos característicos da criminalidade económico-financeira gera, em todo o mundo – e Portugal não escapa a esta realidade -, uma quantidade substancial e altamente valiosa de ativos.

Tais ativos são subsequentemente introduzidos no mercado financeiro «legítimo», através de operações que configuram a prática de outro crime com aqueles intrinsecamente conexo: o crime de branqueamento. O branqueamento constitui uma atividade ilícita que não tem dado sinais de abrandar, apontando as previsões para o seu crescimento, apesar da estagnação da economia mundial nos últimos anos. Daí que o reconhecimento desta estreita ligação tenha sido acautelado na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (artigos 14.º – Medidas para combater o branqueamento de capitais – e 23.º – Branqueamento do produto do crime) e também, entre outros instrumentos jurídicos, nas Recomendações do GAFI.

A erradicação de fenómenos corruptivos no setor público, no setor privado, no comércio internacional ou no âmbito desportivo constitui uma das maiores responsabilidades e desafios dos Estados, da comunidade internacional e dos próprios cidadãos.

A prevenção e a repressão da corrupção e do branqueamento de capitais fazem, por isso, parte integrante das prioridades das organizações e organismos internacionais de que Portugal é parte – como as Nações Unidas, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o Conselho da Europa – que, no sentido de ajudarem os Estados a criarem políticas nacionais nestas áreas, instituíram mecanismos de verificação periódica da aplicação e do funcionamento das convenções ou dos padrões internacionais nestas matérias. Sendo membro destas organizações e organismos, Portugal ratificou todas as convenções penais em matéria de corrupção.

Relativamente aos instrumentos normativos europeus, foi recentemente publicada a Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto, que transpõe para a legislação portuguesa a Diretiva (UE) 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, que altera a Diretiva (UE) 2015/849 relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, e a Diretiva (UE) 2018/1673 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal.

Com esta transposição, o ordenamento jurídico nacional encontra-se dotado dos mecanismos normativos substantivos e processuais reputados adequados à prevenção e repressão do crime de branqueamento, estando harmonizado com os principais instrumentos de direito internacional, bem como em linha com as recomendações e orientações do GAFI. Foi nomeadamente alargado o quadro de ilícitos típicos previstos no artigo 368.º-A (branqueamento) do Código Penal, bem como agravada a moldura penal para os infratores que sejam uma das entidades previstas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e cometam o crime no exercício das suas atividades profissionais. Segundo o Relatório de Avaliação Mútua de Portugal de dezembro de 2017, produzido pelo GAFI, «as sanções penais aplicáveis são proporcionais e dissuasivas».

Importa prosseguir ativamente o trabalho desenvolvido no seio das organizações internacionais de que Portugal faz parte para melhorar os padrões de transparência e responsabilização em matéria de branqueamento de capitais e melhorar a capacidade de recuperação de ativos.

O caráter transnacional deste tipo de fenómenos, a circunstância de existirem ainda múltiplos espaços que acolhem fortunas provenientes do crime, a facilidade com que se realizam transações eletrónicas determinam que o combate a estes fenómenos assuma, cada vez mais, um caráter plurinacional.

A cooperação entre Estados e entre estes e as organizações internacionais que se dedicam ao estudo e acompanhamento deste fenómeno é crucial ao êxito da resposta que se pretende dar a nível local e que tem de ser global.

Por isso, e no âmbito de uma estratégia nacional anticorrupção, importa definir diretivas de ação que compreendam a obrigação de cooperar estreitamente com outros Estados e com as organizações internacionais antes referidas, na implementação e padrões comuns de atuação. Essas obrigações assumem particular relevo no quadro da União Europeia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), espaços com os quais deve ser reforçado o diálogo e a cooperação, nomeadamente na partilha de informações e na troca de conhecimento especializado baseado nas diferentes experiências de investigação e estudo do fenómeno. A cooperação descrita implicará ainda, de forma relevante, a concertação de estratégias tendentes a prevenir a circulação, no mercado financeiro internacional, de capitais provenientes do crime.

A criação destes laços de cooperação no quadro da comunidade internacional cria um ambiente de pressão sobre todos os Estados no sentido de acompanharem o desenvolvimento de estratégias anticorrupção, contribuindo assim para um ambiente internacional hostil ao fenómeno corruptivo.

(1) Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.

(2) Lei n.º 36/94, de 29 de setembro.

(3) Lei n.º 1/97, de 16 de janeiro.

(4) Lei n.º 54/2008, de 4 de setembro.

(5) Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, aprovada em cumprimento da Decisão n.º 2007/845/JAI do Conselho, de 6 de dezembro.

(6) Com alterações introduzidas por diversos atos legislativos, designadamente a Lei n.º 60/2019, de 13 de agosto, que procedeu à última alteração ao Estatuto dos Deputados.

(7) Lei n.º 44/2019, de 21 de junho (regime de subsídios de apoio à atividade política dos Deputados); Lei n.º 52/2019, de 31 de julho (aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos); Lei n.º 60/2019, de 13 de agosto (décima terceira alteração ao Estatuto dos Deputados) e Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro (Estatuto da Entidade para a Transparência).

(8) Iniciativa multilateral, lançada em setembro de 2011 pelos chefes de estado e de governo de oito países (África do Sul, Brasil, Estados Unidos da América, Filipinas, Indonésia, México, Noruega e Reino Unido), e que visa garantir compromissos concretos dos governos para promover a transparência, fomentar a participação pública, combater a corrupção e utilizar as novas tecnologias para fortalecer a democracia participativa.

(9) Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, de 21 de abril.

(10) https://dgpj.justica.gov.pt/Noticias-da-DGPJ/Guias-de-acesso-ao-direito-e-a-justica-para-cidadaos-e-empresas.

(ver documento original)»

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