Parecer PGR: Ajustamento remuneratório de trabalhadores em funções públicas, com maior antiguidade por razões de paridade com os trabalhadores a recrutar para a carreira de técnico especialista pré-hospitalar do INEM


«Parecer n.º 21/2017

Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), I. P.

Técnico de emergência pré-hospitalar – Posicionamento remuneratório – Princípio para trabalho igual salário igual

1.ª Ocorre uma contradição entre a previsão e a estatuição da norma contida no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, porquanto ao preencher-se a previsão – «Sempre que, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, a remuneração base a que atualmente têm direito seja inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam […]» – a estatuição já está atribuída.

2.ª Uma vez que o preenchimento da previsão do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, pressupõe aplicar o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, então, pressupõe criar automaticamente «um nível remuneratório não inferior ao da primeira posição da categoria para a qual transitam» e cujo montante há de corresponder, pelo menos, ao da remuneração base a que já tinham direito (cfr. estatuição do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro).

3.ª Contudo, a partir do sentido que inequivocamente o legislador quis atribuir ao preceito, é possível e razoável uma correção hermenêutica que lhe devolva pleno sentido, ainda que diferenciador de remunerações para trabalhadores na mesma carreira e categoria.

4.ª A garantia constitucional de salário igual para trabalho igual (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição) aplica-se aos trabalhadores em funções públicas e sem desvios ou restrições consentidos nem pelo artigo 269.º da Constituição nem por outro qualquer preceito constitucional.

5.ª O disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, infringe direta e ostensivamente a alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na parte em que reposiciona os trabalhadores do INEM, I. P., transitados para a nova carreira especial e categoria de técnico de emergência pré-hospitalar em posição e nível remuneratório inferiores aos dos novos trabalhadores a recrutar e ingressar na mesma categoria. Obriga mesmo a que os primeiros sejam reposicionados em «nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam»

6.ª Introduziu-se uma distorção remuneratória desconforme com a garantia de salário igual para trabalho igual, pois não se encontram diferenças ao nível do conteúdo funcional a desempenhar por uns e outros trabalhadores do INEM, I. P., nem, indistintamente, ao nível das habilitações quer gerais quer específicas, designadamente a idêntica formação profissional requerida para exercer as mesmas funções.

7.ª A organização do trabalho em funções públicas segundo carreiras e destas em categorias com várias posições remuneratórias de valor crescente destina-se a assegurar a igualdade e a fomentar um tratamento justo, não podendo, ao invés, constituir fator das distorções que justamente se pretendem evitar.

8.ª Decorre da garantia de salário igual para trabalho igual, na expressão do Tribunal Constitucional, um «princípio geral da não inversão das posições relativas de trabalhadores por mero efeito da reestruturação de carreiras».

9.ª Este princípio vincula diretamente as entidades públicas (cfr. n.º 1 do artigo 18.º da Constituição), uma vez que a referida garantia, apesar de sistematicamente situada entre os direitos económicos, sociais e culturais, ostenta natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 17.º da Constituição).

10.ª De modo a evitar distorções, como aquela que surge por efeito da norma controvertida, o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12 A/2008, de 27 de fevereiro, contém uma cláusula que salvaguarda, como mínimo, o nível remuneratório correspondente à 1.ª posição da categoria para a qual transitam e outra que fixa, como máximo, o montante da remuneração base a que têm direito ao tempo da transição, se aquele montante for superior. Por conseguinte, não abre as portas a acréscimo algum incompatível com a alínea b) do n.º 2 da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, até porque os acréscimos que esta norma veda pressuporiam aplicar o n.º 1, e não o n.º 2, da citada Lei n.º 12-A/2008.

11.ª Contudo, apesar da incompatibilidade do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, com o artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e com o artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, o certo é que nenhum destes atos legislativos possui valor reforçado, em termos de fundar um juízo de ilegalidade constitucional (inconstitucionalidade indireta qualificada).

12.ª Em todo o caso, a inconstitucionalidade material direta do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, é motivo mais do que suficiente para o legislador empreender com brevidade a sua revisão em ordem a pôr termo à discriminação iniciada com a sua entrada em vigor.

13.ª Não obstante proibidas as valorizações remuneratórias dos titulares de cargos políticos e dos trabalhadores em funções públicas, por meio das sucessivas leis orçamentais (v.g. n.º 1 do artigo 38.º do OE 2015, prorrogado no OE 2016 [Cfr. n.º 1 do artigo 18.º] e no OE 2017 [Cfr. n.º 1 do artigo 19.º]) excluíram-se os ajustamentos remuneratórios inerentes à transição dos trabalhadores em funções públicas para carreiras revistas (n.º 16 do artigo 38.º do OE 2015). Trata-se de um corolário da garantia constitucional de salário igual para trabalho igual (cfr. alínea a] do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição).

14.ª Por conseguinte, a correção do reposicionamento remuneratório dos trabalhadores do INEM, I. P., transitados para a carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar possui inteira cobertura nas leis orçamentais para os anos económicos de 2016 e de 2017, ao admitirem os ajustamentos decorrentes da garantia de salário igual para trabalho igual na revisão das carreiras dos trabalhadores em funções públicas que ainda não o tivessem sido.

Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Saúde,

Excelência:

Dignou-se Vossa Excelência tomar parecer deste corpo consultivo, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público(1), por lhe suscitar dúvidas a dualidade de posições e níveis remuneratórios dos trabalhadores na base da carreira especial e categoria de técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH).

Por um lado, aqueles que transitaram para esta nova carreira especial, oriundos de carreiras privativas do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), I. P.

Por outro lado, os trabalhadores a recrutar para a mesma carreira e para exercerem iguais funções públicas ao serviço do mesmo instituto público.

Os trabalhadores que vierem a ingressar, ex novo, na carreira de técnico de emergência pré-hospitalar irão auferir uma remuneração base no valor de (euro) 738,05, ao passo que 1038 dos 1058 trabalhadores que transitaram de carreiras a extinguir auferem uma remuneração base de apenas (euro) 692,71.

Assim, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República é chamado a pronunciar-se acerca da questão concretamente enunciada nestes termos:

«Perante o disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, que determinou a colocação numa posição remuneratória dos trabalhadores que transitaram para a carreira TEPH inferior àquela em que serão posicionados os novos TEPH que, por isso, irão usufruir ab initio uma remuneração base superior, não serão colocados em causa princípios em matéria laboral e constitucional, nomeadamente as seguintes normas – n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro(2), n.º 2 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho(3), e alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa?».

A iniciativa vem acompanhada pelo parecer n.º 3/2017, da Exma. Auditora Jurídica, concluído em 10 de abril de 2017, e por dois ofícios remetidos ao Exmo. Chefe do Gabinete de Vossa Excelência, a saber, o ofício n.º 1330, de 13 de março de 2017, da parte do Exmo. Presidente do Conselho Diretivo do INEM, I. P., e o ofício S-3719/2017/ACSS, de 24 de março de 2017, da parte de um dos vogais do Conselho Diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), I. P.

Vem ainda solicitada urgência na apreciação requerida a este corpo consultivo(4), considerando o facto de se encontrar em marcha o ingresso de 100 novos trabalhadores na mencionada carreira especial(5), o que convola a abstração das dúvidas expostas por Vossa Excelência em questões concretas e de crescente relevância social.

Distribuído o pedido(6), cumpre-nos formular projeto de parecer com a maior brevidade possível, o que justifica centrarmo-nos no essencial das questões controvertidas.

§1.º Da nova carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar: posicionamento dos novos trabalhadores v. reposicionamento remuneratório dos trabalhadores transitados de anteriores carreiras do INEM, IP.

No centro das questões controvertidas encontra-se o Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril (carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar) e em especial, o conteúdo do artigo 18.º, cujo teor se transcreve na íntegra:

«Artigo 18.º

(Transição para a carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar)

1 – Transitam para a carreira especial de TEPH os trabalhadores pertencentes ao mapa de pessoal do INEM, I. P., atualmente integrados nas carreiras de técnico de ambulância de emergência, de técnicos operadores de telecomunicações de emergência, incluindo aqueles que transitaram para a carreira de assistente técnico ao abrigo do Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de julho, e os auxiliares de telecomunicações e emergência com contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, desde que detentores dos requisitos previstos no artigo anterior.

2 – Os trabalhadores acima referidos transitam para a categoria de técnico de emergência pré-hospitalar, sendo reposicionados em termos remuneratórios de acordo com o disposto no artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e nos artigos 41.º e 42.º da LTFP(7).

3 – Sempre que, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, a remuneração base a que atualmente têm direito seja inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam, os trabalhadores são reposicionados na posição remuneratória, automaticamente criada, de nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam, de montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm direito.

4 – Nos casos em que os trabalhadores referidos no artigo anterior devam obter aprovação em curso de formação, para efeitos de transição, deve o INEM, I. P. ministrá-la no prazo máximo de 18 meses.

5 – A transição para a carreira especial de TEPH efetua-se mediante lista nominativa, notificada a cada um dos trabalhadores e tornada pública por afixação no órgão ou serviço, produzindo efeitos à data de afixação da lista.

6 – Da lista nominativa a que se refere o número anterior consta, relativamente a cada trabalhador, entre outros elementos, a referência à modalidade de constituição do vínculo de emprego público, categoria, conteúdo funcional, posição remuneratória e nível remuneratório.

7 – Os pontos obtidos no âmbito do processo de avaliação do desempenho anterior ao processo de transição para a carreira especial TEPH relevam nesta carreira para efeitos de alteração da posição remuneratória.»

Por seu turno, aos trabalhadores a recrutar para ingresso nesta mesma carreira aplicam-se o artigo 12.º e o anexo II do mesmo ato legislativo e que passamos igualmente a transcrever:

«Artigo 12.º

(Remuneração)

1 – A identificação das posições e níveis remuneratórios da tabela remuneratória única aplicáveis à carreira especial de TEPH constam do anexo II ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante.

2 – A determinação do posicionamento remuneratório dos candidatos na sequência de procedimento concursal e a alteração do posicionamento remuneratório obedecem ao previsto na LTFP.»

«Anexo II

(a que se refere o artigo 12.º)

Tabela remuneratória

(ver documento original)

Quer isto dizer que os níveis da tabela remuneratória da carreira de técnico de emergência pré-hospitalar apresentam valores pecuniários superiores aos que se previram para a transição dos trabalhadores em funções públicas análogas, apesar da sua maior experiência e antiguidade.

Aos trabalhadores que vierem a ser recrutados e vierem a integrar a carreira de técnico de emergência pré-hospitalar na 1.ª posição remuneratória é atribuído o nível remuneratório 6 da tabela única ((euro) 738,05), aprovada pela Portaria n.º 1553-C/2008, de 31 de dezembro (a que se refere o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro).

A generalidade dos trabalhadores já ingressados, oriundos de várias anteriores carreiras do INEM, I. P., ao transitarem sob aplicação do n.º 3 do transcrito artigo 18.º, não foram reposicionados naquele nível remuneratório, pois de acordo com esta norma, sendo a remuneração base a que tinham direito inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam, seriam reposicionados numa posição remuneratória, criada automaticamente, de nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam, de montante pecuniário correspondente à remuneração base a que têm direito(8).

Por outras palavras, o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril(9), colocá-los-ia sempre abaixo do nível remuneratório 6, ao terem de ser reposicionados num nível remuneratório inferior à primeira posição da categoria.

§2.º Da norma controvertida: o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril.

Amplamente esgotado o prazo de 180 dias que se estabelecia no artigo 101.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, para a completa reestruturação das carreiras gerais e especiais do trabalho em funções públicas, a verdade é que algumas foram permanecendo por rever, sem serem extintas nem declaradas subsistentes. Foi por este motivo que a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2009) consentiu, no artigo 18.º, que se mantivessem «as carreiras que ainda não [tivessem] sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, designadamente as de regime especial e os corpos especiais».

Isto, em termos que foram sendo replicados nas subsequentes leis orçamentais do Estado.

Na alínea a) do n.º 2 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, que, em anexo, aprovou a LTFP, insistir-se-ia pelo cumprimento desse dever, só parcialmente cumprido pela Lei n.º 75/2014, de 12 de setembro, ao proceder à integração das carreiras subsistentes e dos cargos, carreiras e categorias ainda não revistos na tabela remuneratória única, aprovada pela Portaria n.º 1553-C/2008, de 31 de dezembro (cfr. n.º 1 do artigo 5.º).

Na falta de um nível remuneratório exatamente igual na tabela remuneratória única, determinava-se que os trabalhadores fossem integrados «no nível remuneratório, automaticamente criado, cujo montante pecuniário [fosse] idêntico ao montante pecuniário fixado para a posição remuneratória da categoria em que se encontram inseridos».

Mais se previa que, até ao fim de 2014, o Governo revisse a «amplitude dos posicionamentos remuneratórios previstos na TRU para as carreiras para as quais se justifique criar condições de valorização remuneratória face, nomeadamente, às práticas salariais vigentes no mercado de trabalho em Portugal».

Depois das reduções remuneratórias gerais e da contenção geral de progressões e promoções, a única modificação conhecida pelos trabalhadores das antigas carreiras conducentes à nova carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar veio a ser a eliminação progressiva das reduções remuneratórias, ao longo de 2016, por via da Lei n.º 159-A/2015, de 30 de dezembro.

É, portanto, este o quadro remuneratório dos trabalhadores(10) do INEM, I.P.(11), visados no pedido de consulta, quando foi publicado o Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, ao arrepio da expectativa legítima que se ancorava no n.º 16 do artigo 38.º da Lei do Orçamento do Estado para 2015(12) e cujos feitos foram prorrogados nos Orçamentos do Estado para 2016(13) e para 2017(14).

Com efeito, no n.º 16 do artigo 38.º da Lei do Orçamento do Estado para 2015 (disposição ainda mantida em vigor, como acabámos de assinalar) excluem-se da proibição de valorizações remuneratórias precisamente os ajustamentos inerentes à revisão das carreiras.

Os trabalhadores em causa não tinham conhecido valorização salarial alguma quando surgiu o contraste significativo entre a posição e nível remuneratório para que transitaram (cfr. n.º 3 do artigo 18.º) – o mesmo montante, em termos reais – e a posição e nível remuneratório imediatamente aplicáveis aos trabalhadores a recrutar para a sua carreira e categoria (cfr. artigo 12.º).

Os primeiros podem, quando muito, aspirar a, num termo incerto, alcançar a posição remuneratória dos trabalhadores ainda em recrutamento.

Acresce que o modo como se produz a derrogação revela contradições literais muito significativas no teor da norma, a ponto de só a ratio legis permitir compreender que se pretendeu inequivocamente conter a remuneração dos trabalhadores transitados dentro do montante das remunerações que, ao tempo, auferiam.

Vejamos, reproduzindo de novo o que se dispõe no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril:

«Sempre que, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, a remuneração base a que atualmente têm direito seja inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam, os trabalhadores são reposicionados na posição remuneratória, automaticamente criada, de nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam, de montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm direito».

Deve notar-se que o enunciado tem como pressuposto a aplicação integral do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro.

Não apenas da previsão – «Em caso de falta de identidade […]» – mas também da estatuição, cujo teor garante como mínimo a «primeira posição da categoria para a qual transitam».

Isto significa que, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, jamais a remuneração base dos trabalhadores reposicionados poderia ser inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam. Esta norma contém uma solução completa para os casos em que seja preciso, ao mesmo tempo, criar interinamente uma posição remuneratória (por falta de identidade na correspondência) e obstar à discriminação dos trabalhadores em trânsito (nível remuneratório nunca inferior ao da 1.ª posição remuneratória da nova carreira constituída).

Se a previsão do n.º 3 do artigo 18.º, que vimos de transcrever, começa com o advérbio «sempre que», mas logo acrescenta a aplicação integral do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, teríamos de concluir que a estatuição nunca teria razão de ser nem de aplicação.

Entre previsão e estatuição deve haver uma concordância mínima, uma relação condicional, mas que possa ser também predicativa. Se o preenchimento da previsão implica uma estatuição de norma que a não pode dar (antes pelo contrário) ocorre uma quebra na identidade lógica entre os referentes da previsão e de estatuição e assim comprometida a relação predicativa, indispensável, segundo Karl Engisch à qualificação das normas jurídicas(15).

Todavia, o elemento teleológico diferenciador é tão notório que acaba por facultar uma interpretação corretiva da imperfeição com que o legislador se exprimiu. Exige fazer tabula rasa de uma parte do elemento literal e cingir a referência à prévia aplicação do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, como sendo limitada à previsão, ou seja, o segmento em que pode ler-se, como norma especial do n.º 1: «Em caso de falta de identidade(16) […]».

Por outras palavras, é possível extrair do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, algo como isto: nas hipóteses contempladas pelo n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, em lugar de se aplicar a estatuição nele contida, os trabalhadores conservam simplesmente a remuneração a que atualmente têm direito, ficcionando-se porém a criação ad hoc de uma posição e nível remuneratório próprios.

Não fora esta fasquia, imposta pelo disposto no n.º 3 do artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, e os trabalhadores transitados para a carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar já estariam a ser remunerados em nível e posição nunca inferiores àqueles que se preveem para os trabalhadores a recrutar e a ingressar na mesma carreira.

Assim, enquanto os primeiros continuam a auferir não mais do que a remuneração base a que tinham direito antes da transição – em 16 de abril de 2016(17) – os novos técnicos de emergência pré-hospitalar irão vencer pelo nível correspondente à 1.ª posição remuneratória da categoria de ingresso, sempre (ou quase sempre) em montante superior aos seus colegas mais antigos e experimentados.

Perante o resultado descrito, é absolutamente pertinente suscitar a conformidade do tratamento diferenciado entre trabalhadores da mesma carreira e categoria com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição:

«Artigo 59.º

(Direitos dos trabalhadores)

1 – Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:

a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna;

[…]».

O contraste entre posições e níveis remuneratórios, sem nenhum fundamento material objetivo que ressalte, nem razoabilidade que se evidencie, desfere sobre o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, as consequências da inconstitucionalidade por violação direta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na parte em que constitui garantia fundamental de salário igual para trabalho igual.

Garantia constitucional dos trabalhadores que, pelo contrário, é dada pelas normas que o n.º 3 do artigo 18.º pretende afastar: o n.º 16 do artigo 38.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, e o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro. Ambas apresentam-se como corolário da garantia constitucional de salário igual para trabalho igual. Derrogá-las é derrogar a norma constitucional.

Para melhor captar o enunciado do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, importa enquadrá-lo entre as demais disposições do mesmo artigo:

«Artigo 104.º

(Reposicionamento remuneratório)

1 – Na transição para as novas carreiras e categoria, os trabalhadores são reposicionados na posição remuneratória a que corresponda nível remuneratório cujo montante pecuniário seja idêntico ao montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm direito, ou a que teriam por aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 112.º(18), nela incluindo adicionais e diferenciais de integração eventualmente devidos.

2 – Em caso de falta de identidade, os trabalhadores são reposicionados na posição remuneratória, automaticamente criada, de nível remuneratório não inferior ao da primeira posição da categoria para a qual transitam cujo montante pecuniário seja idêntico ao montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm direito, ou que teriam por aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 112.º

3 – No caso previsto no número anterior, os trabalhadores, até ulterior alteração do posicionamento remuneratório, da categoria ou da carreira, mantêm o direito à remuneração base que vêm, ou viriam, auferindo, a qual é objeto de alteração em idêntica proporção à que resulte da aplicação do n.º 4 do artigo 68.º

4 – (Revogado.)

5 – No caso previsto no n.º 2, quando, em momento ulterior, os trabalhadores devam alterar a sua posição remuneratória na categoria, e da alteração para a posição seguinte resultasse um acréscimo remuneratório inferior a um montante pecuniário fixado na portaria referida no n.º 2 do artigo 68.º, aquela alteração tem lugar para a posição que se siga a esta, quando a haja.

6 – O montante pecuniário referido no número anterior pode ser alterado na sequência da negociação prevista no n.º 4 do artigo 68.º».

Temos, assim, que, por aplicação do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, os trabalhadores a transitar para a carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar jamais poderiam ser inscritos em posição com nível remuneratório cujo montante fosse inferior a (euro) 738,05.

Se porventura já lhes assistisse o direito a uma remuneração base de valor superior, então, sim, criar-se-ia uma posição remuneratória ad hoc, com um nível remuneratório equivalente à remuneração base que venciam. Nível esse a extinguir progressivamente por caducidade à medida que os trabalhadores abrangidos viessem a alcançar posições remuneratórias superiores, tivessem transitado para outras carreiras, tivessem transitado de categoria ou simplesmente cessado aquela relação jurídica de emprego público.

Só assim não aconteceu porque o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, determinou que a tal posição remuneratória ad hoc, e a criar automaticamente, se limitasse a transpor o «montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente têm direito», sabendo-se de antemão ser «inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam(19)».

Por seu turno, é-nos perguntado se não há incompatibilidade com o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho. Neles consignou-se o que vai transcrito:

«Artigo 41.º

(Revisão das carreiras, dos corpos especiais e dos níveis remuneratórios das comissões de serviço)

1 – Sem prejuízo da revisão que deva ter lugar nos termos legalmente previstos, mantêm-se as carreiras que ainda não tenham sido objeto de extinção, de revisão ou de decisão de subsistência, designadamente as de regime especial e as de corpos especiais, bem como a integração dos respetivos trabalhadores, sendo que:

a) Só após tal revisão tem lugar, relativamente a tais trabalhadores, a execução das transições através da lista nominativa referida no artigo 109.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, na redação atual, exceto no respeitante à modalidade de constituição da sua relação jurídica de emprego público e às situações de mobilidade geral do ou no órgão ou serviço;

b) Até ao início da vigência da revisão:

i) As carreiras em causa regem-se pelas disposições normativas aplicáveis em 31 de dezembro de 2008, com as alterações decorrentes dos artigos 156.º a 158.º, 166.º e 167.º da LTFP e 113.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, na redação atual;

ii) Aos procedimentos concursais para as carreiras em causa é aplicável o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 37.º da LTFP, bem como no n.º 11 do artigo 28.º da Portaria n.º 83-A/2009, de 22 de janeiro, alterada e republicada pela Portaria n.º 145-A/2011, de 6 de abril;

iii) O n.º 3 do artigo 110.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, na redação atual, não lhes é aplicável, apenas o sendo relativamente aos concursos pendentes na data do início da respetiva vigência.

2 – A revisão das carreiras a que se refere o número anterior deve assegurar:

a) A observância das regras relativas à organização das carreiras previstas na LTFP e no seu artigo 149.º, designadamente quanto aos conteúdos e deveres funcionais, ao número de categorias e às posições remuneratórias;

b) O reposicionamento remuneratório, com o montante pecuniário calculado nos termos do n.º 1 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, na redação atual, sem acréscimos;

c) As alterações de posicionamento remuneratório em função das últimas avaliações de desempenho e da respetiva diferenciação assegurada por um sistema de quotas;

d) As perspetivas de evolução remuneratória das anteriores carreiras, elevando-as apenas de forma sustentável.

[…]».

Na alínea b) do n.º 2, aponta-se para que os reposicionamentos remuneratórios não inculquem acréscimos.

Ao aprovar o Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, o legislador terá porventura considerado que o ajustamento remuneratório inerente à transição, para satisfazer a igualdade, como sendo um acréscimo remuneratório ao montante «calculado nos termos do n.º 1 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro».

Se observarmos este último preceito, concluiremos que da sua aplicação não resulta nunca nenhum acréscimo implícito, uma vez que pressupõe haver identidade entre a remuneração mensal percebida e um dos níveis remuneratórios da tabela única de remunerações.

Como tal, o que se interditou em sucessivos orçamentos do Estado e, permanentemente na alínea b) do n.º 2 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, é que o legislador se prevaleça da transição, numa determinada carreira especial, como oportunidade para introduzir um aumento remuneratório, de forma alheia às outras carreiras.

O sentido é, pois, o de não fazer da transição uma ocasião para aumentos remuneratórios que quebrem a igualdade com outras carreiras – gerais e especiais – e sobre cujos trabalhadores recaiu e continua a recair a proibição de valorizações remuneratórias.

Já no caso de inexistir identidade entre o montante percebido ao tempo e uma das posições remuneratórias tipificadas, aplica-se, ao invés, o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, cujo teor garante como mínimo o nível da primeira posição remuneratória da categoria de destino e como máximo o montante pecuniário equivalente à remuneração mensal a que já tinham direito.

Acréscimo haveria, sim, na hipótese de o reposicionamento se efetuar para posição e nível remuneratório de valor pecuniário superior ao da primeira posição da categoria para a qual transitam, na nova carreira de técnico de emergência médica pré-hospitalar, e acima da remuneração base que lhes cabia nas anteriores carreiras.

De resto, e como houve já oportunidade de conferir, os orçamentos do Estado para 2016(20) e para 2017(21), nos artigos 18.º e 19.º, respetivamente, prorrogaram o disposto no artigo 38.º da lei orçamental do ano económico anterior(22).

E em toda a sua extensão. Como tal, se no n.º 1 desse artigo se proíbem as valorizações remuneratórias, entre outros, dos trabalhadores em funções públicas, já no n.º 16 do mesmo artigo consigna-se o seguinte:

«O disposto no presente artigo não prejudica a concretização dos reposicionamentos remuneratórios decorrentes da transição para carreiras revistas, nos termos do artigo 101.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, ou, sendo o caso, a transição para novos regimes de trabalho, desde que os respetivos processos de revisão se encontrem concluídos até à data da entrada em vigor da presente lei».

Mais uma razão, e de peso, para dissipar qualquer dúvida acerca do exato sentido e alcance da proscrição de acréscimos, enunciada na alínea b) do n.º 2 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.

A proibição não atinge os reposicionamentos decorrentes da transição para carreiras revistas(23), sempre que, por razões de desigualdade, ou seja, sem haver identidade entre o montante da remuneração percebida e o nível da primeira posição remuneratória da categoria para onde os trabalhadores transitam, haja necessidade de introduzir ajustamentos.

É justamente o caso da carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar.

Ademais, a própria Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, teve o cuidado (porventura desnecessário) de, no n.º 2 do artigo 44.º, assegurar que o seu conteúdo «não prejudica a vigência das normas da Lei do Orçamento do Estado em vigor».

§3.º Da posição do Instituto Nacional de Emergência Médica, I. P., do entendimento da Administração Central do Sistema de Saúde, I. P., e do parecer da Auditora Jurídica.

Veremos, seguidamente, as posições manifestadas acerca das questões controvertidas pelo INEM, I. P., pela ACSS, I. P., e pela Exma. Auditora Jurídica no Ministério da Saúde.

O INEM, I. P., dirigiu-se ao Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, em 13 de março de 2017, expondo a iminência da questão controvertida, por já se encontrar aberto concurso de recrutamento de 100 novos técnicos de emergência pré-hospitalar, a contratar sob o nível remuneratório 6, calculado em (euro) 738,05.

Por seu turno, «a quase totalidade (mais de 1000) dos trabalhadores do INEM que transitaram para a carreira TEPH foram posicionados numa posição remuneratória inferior […] de montante pecuniário correspondente à remuneração base que auferiam (quase todos com valores de (euro) 692, 81 ou inferiores)».

E continua o Senhor Presidente do Conselho Diretivo do INEM, I. P.:

«Esta situação para além de imoral e injusta, será geradora de um profundo desconforto entre os atuais trabalhadores do INEM. Por outro lado, ela é de legalidade bastante duvidosa porquanto é geradora de inversão de posições relativas entre os trabalhadores, sendo de notar que os nossos tribunais têm de forma sistemática e consistente proferido decisões contrárias a práticas de inversão de posições relativas de trabalhadores, como será o caso. De facto, estamos perante uma situação em que os trabalhadores com menos antiguidade e sem avaliação do desempenho vão auferir remuneração superior aos trabalhadores com mais antiguidade e submetidos à avaliação do desempenho, sendo que no contexto da Administração Pública a determinação da remuneração no âmbito da mesma carreira se faz em função da antiguidade e do mérito, fatores que, no caso concreto, não serão considerados e conduzirão a uma total inversão de posições relativas dos trabalhadores o que, como referido, tem merecido a censura dos nossos tribunais».

A ACSS, I. P., por solicitação de Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto da Saúde, pronunciou-se em 24 de março de 2017 e começa por registar a contradição entre o disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, com o enunciado do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro.

Deste último preceito resulta um princípio segundo o qual a transição não pode efetuar-se para um nível remuneratório inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria.

Ora, pelo contrário, decorre do n.º 3 do artigo 18.º, do sempre citado Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, um montante remuneratório inferior, pois trata-se muito simplesmente de criar uma posição remuneratória correspondente ao valor da remuneração base já auferida.

Prossegue a ACSS, I. P., expondo a comparação com a carreira especial de enfermagem. Ao passo que para os enfermeiros se previu um regime transitório – os enfermeiros a ingressar venceriam segundo os valores remuneratórios dos seus pares, enquanto não estivesse concluído o reposicionamento destes (artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 122/2010, de 11 de novembro) – já para a carreira de técnico de emergência pré-hospitalar, o legislador absteve-se de adotar providência igual ou de efeito análogo.

E não tem reservas em apontar ao n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, a infração da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na parte em que consagra o princípio da paridade salarial para prestação de trabalho igual:

«Com efeito, pelas regras de transição expressas no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, em particular do seu n.º 3, os TEPH que transitaram para a nova carreira, embora mais antigos na categoria e na carreira, passarão a auferir, na data em que venha a proceder-se ao respetivo recrutamento no âmbito do procedimento concursal […] remuneração inferior à dos trabalhadores selecionados nesse mesmo procedimento».

E se o aludido princípio constitucional não obriga a uma uniformidade remuneratória, «a pagar-se mais, deve naturalmente, ser aos que maiores habilitações possuam e mais tempo de serviço».

Considera-se na missiva em citação que estamos diante de situação próxima à que justificou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de outubro(24).

Sugere a ACSS, I. P., que os trabalhadores já integrados na carreira de técnico de emergência médica hospitalar sejam reposicionados, logo que se efetue o primeiro recrutamento, no nível remuneratório correspondente à primeira posição da correspondente categoria, com o que se alcançaria a conformidade com a norma constitucional preterida.

Passemos ao que escreve a Exma. Auditora Jurídica no seu douto parecer.

Entende que a transição efetuada ao abrigo do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, embora em sintonia com o disposto na alínea b) do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014 – ao dispor que não se admitem acréscimos remuneratórios – acaba por saldar-se na violação de princípio constitucional.

E logo faz notar que o referido n.º 3, apesar de remeter para o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, entra com este em contradição:

«[E]ssa contradição decorre, em nosso entender, do facto de, ao contrário do estabelecido no artigo 18.º do DL 19/2016 que expressamente prevê a possibilidade da remuneração base dos trabalhadores oriundos do INEM ser inferior ao 1.º escalão da remuneração prevista para a nova carreira, já no artigo 104.º da Lei 12-A/2008, tal hipótese parece-nos não contemplada, daí prever-se que o nível remuneratório decorrente da transição para a nova carreira não possa ser inferior ao da 1.ª posição da categoria da nova carreira».

E conclui a Exma. Auditora Jurídica ocorrer infração do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na parte em que se garante salário igual para trabalho igual.

Não obstante o princípio não signifique uniformidade de salários, a diferenciação há de assentar em fundamentos objetivos e há de mostrar-se razoável; não arbitrária.

Nesta linha, o parecer convoca múltiplos arestos da jurisprudência constitucional(25), nomeadamente para assinalar que a diferenciação remuneratória sobre igual prestação de trabalho pode justificar-se no caráter duradouro da relação jurídica laboral, beneficiando designadamente a antiguidade e a experiência profissionais.

Nunca, porém, o contrário, ou seja, discriminar os trabalhadores que justamente gozam destes créditos. Do mesmo passo e convergentemente são citados vários pareceres deste Conselho Consultivo(26).

Isto para concluir nos termos cujo teor se transcreve:

«Face ao que se deixa dito, podemos considerar que o art. 18.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 19/2016, na medida em que permite que os trabalhadores que transitaram do quadro de pessoal do INEM, apesar de mais antigos na categoria, tenham vencimento inferior a todos os que vierem a ser recrutados na sequência do procedimento concursal de ingresso na carreira, resultando da sua aplicação, situações de inversão de posições relativas de trabalhadores, revela-se contrário ao princípio da igualdade na retribuição, ínsito nos artigos 59.º, n.º 1, alínea a), e 13.º da lei fundamental».

Acompanhamos o sempre citado parecer e as tomadas de posição dos referidos institutos públicos, apenas com uma nota relativa à colisão entre normas legislativas em que uma se coloca em posição de excecionalidade (o n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril).

Nem a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, nem a Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, possuem valor reforçado sobre a norma controvertida do n.º 3 do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, em termos que permitam concluir pela sua ilegalidade constitucional, ou melhor dizendo, inconstitucionalidade indireta, mas qualificada.

De valor reforçado são os atos legislativos discriminados no n.º 3 do artigo 112.º da Constituição:

«Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas».

E, como tal, não pode afirmar-se que o segmento normativo que provoca a distorção remuneratória na carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar, seja inválido por contraditar o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, ou a alínea b), da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.

Nenhuma destas leis dispõe de uma qualificação formal ou procedimental, nenhuma é pressuposto normativo necessário de outras leis (v.g. as grandes opções do plano relativamente à lei do Orçamento do Estado – cfr. alínea b], do n.º 2 do artigo 105.º da Constituição) nem tão-pouco gozam de credencial constitucional para terem de ser respeitadas por outros atos legislativos (v.g. a lei de bases relativamente ao decreto-lei de desenvolvimento – cfr. n.º 2 do artigo 112.º da Constituição).

§4.º Da igualdade do trabalho a prestar.

Não restam dúvidas quanto à diferença de tratamento remuneratório entre trabalhadores em funções públicas de uma mesma carreira e de uma mesma categoria: a grande maioria dos que, oriundos de anteriores carreiras do INEM, I. P., transitaram para a carreira de técnico de emergência pré-hospitalar, em cumprimento do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, e os que vierem a ser recrutados brevemente e ingressarem na mesma carreira e categoria, mas com uma posição e nível remuneratórios superiores que se cifram em mais (euro) 45,24 de remuneração base mensal.

Nem restam dúvidas, por outro lado, de que para igual prestação de trabalho podem justificar-se remunerações diferenciadas, contanto que a diferença encontre um fundamento objetivo, racional e razoável e seja, ela própria, contida dentro desses mesmos parâmetros.

À partida, trabalhadores com maior antiguidade e mais experiência no desempenho de funções públicas podem ser beneficiados na remuneração base mensal, pois esta não se circunscreve ao que estritamente é o salário.

A remuneração não se confina a retribuir simetricamente a concreta prestação de trabalho mensal. Pode e deve retribuir também a acumulação de experiência e dedicação indiciadas pela permanência em funções por um período de tempo razoável.

O inverso é que sugere o arbítrio, ou seja, atribuir uma remuneração mais elevada aos trabalhadores acabados de ingressar na carreira e na categoria.

Importa, assim, conferir o estatuto laboral não remuneratório de uns e outros para verificar se há porventura alguma diferença que permita fundamentar objetivamente a aparente distorção remuneratória.

a) Qualificações necessárias dos trabalhadores.

Até entrar em vigor o Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, as carreiras dos trabalhadores do INEM, I. P., eram as constantes dos anexos I e II ao Regulamento Interno do Pessoal do Instituto Nacional de Emergência Médica, aprovado pelo Despacho Normativo n.º 46/2005, do Ministro das Finanças e da Administração Pública e do Ministro da Saúde, de 19 de setembro de 2005(27).

De acordo com o artigo 20.º, os trabalhadores repartiam-se segundo os conteúdos funcionais e as habilitações literárias exigíveis por 14 carreiras:

I – Carreira médica: licenciatura em Medicina e grau de assistente das carreiras médicas;

II – Carreira de enfermagem: licenciatura em área de formação adequada;

III – Carreira de técnico superior: licenciatura em área de formação adequada;

IV – Carreira de informática: 12.º ano na área de informática ou curso técnico-profissional na mesma área;

V – Carreira de técnico administrativo: 11.º ano ou equivalente;

VI – Carreira técnico-profissional: a) adequado curso tecnológico, b) curso das escolas profissionais ou das escolas especializadas de ensino artístico, ou c) outro, desde que conferindo certificado de qualificação profissional de nível III(28), ou, por fim, d) escolaridade obrigatória e experiência adequada no exercício da função;

VII – Carreira operativa: formação específica num ofício, arte ou profissão;

VIII – Carreira de fiel de armazém: escolaridade obrigatória;

IX – Carreira de motorista: escolaridade obrigatória;

X – Carreira de auxiliar: escolaridade obrigatória;

XI – Carreira de telefonista: escolaridade obrigatória;

XII – Carreira de técnico de telecomunicações de emergência: curso de técnico-profissional adequado e/ou escolaridade mínima obrigatória (9.º ano até 2005, 12.º ano, a partir de 2006);

XIII – Carreira de técnico operador de telecomunicações de emergência: escolaridade mínima obrigatória (9.º ano até 2005, 12.º ano, a partir de 2006); e

XIV – Carreira de técnico de ambulância de emergência: curso de tripulante de ambulância de socorro adequado e escolaridade mínima obrigatória (9.º ano até 2005, 12.º ano, a partir de 2006).

De entre os trabalhadores destas carreiras apenas transitaram para a nova carreira de técnico de emergência pré-hospitalar, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, os trabalhadores inscritos no mapa de pessoal do INEM, I. P., e que preenchessem os seguintes requisitos:

1) Já integrassem a carreira de técnico de ambulância de emergência, o que vimos pressupor o curso de tripulante de ambulância de socorro adequado, e desde que tivessem completado o 9.º ano de escolaridade até 2005, ou o 12.º ano, a partir de 2006), ou

2) Já integrassem a carreira de técnico operador de telecomunicações de emergência: o que vimos pressupor terem completado o 9.º ano, se ingressados até 2005, ou o 12.º ano, a partir de 2006, ainda que intercalarmente tenham transitado pela carreira (geral) de assistente técnico (ao abrigo do Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de julho), ou

3) Desempenhassem funções de auxiliares de telecomunicações e emergência com contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, desde que detentores dos requisitos previstos no artigo 17.º, isto é, que possuíssem a formação específica, na maior parte dos casos, a cargo do INEM, I. P.(29), e nos termos que transcrevemos:

«Artigo 17.º

(Habilitações profissionais)

O INEM, I. P., deve ministrar a formação específica, a que se refere o artigo 4.º, que habilite os atuais trabalhadores que exercem funções no CODU(30) e os auxiliares de telecomunicações e emergência que reúnam os requisitos constantes das alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 4.º a exercer funções nos meios de emergência médica pré-hospitalar como TEPH.»

A fim de prosseguirmos na comparação da natureza, qualidade e quantidade do trabalho a prestar por uns e outros trabalhadores (transitados e a recrutar para a nova carreira especial) teremos, pois, de passar em revista o disposto no artigo 4.º, considerando o reenvio da norma que vimos de reproduzir:

«Artigo 4.º

(Requisitos de ingresso na carreira)

1 – O nível habilitacional exigido para ingresso na carreira de TEPH é o 12.º ano de escolaridade ou seu equivalente legal.

2 – O ingresso na carreira, para além dos requisitos legais exigidos para a constituição de vínculo de emprego público, está ainda condicionado à verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) Ser titular de carta de condução tipo B e averbamento grupo 2;

b) Aprovação em prova inicial de conhecimentos, prova de avaliação curricular, prova de condução de base e avaliação psicológica, definidas pelo INEM, I. P.;

c) Aprovação em curso de condução defensiva, definido e homologado pelo INEM, I. P.;

d) Aprovação em curso de formação profissional específico, homologado pelo membro do Governo responsável pela área da saúde, mediante proposta do INEM, I. P., e parecer prévio da Ordem dos Médicos, o qual tem lugar no decurso do período experimental».

Quer isto dizer que foi condição essencial do trânsito para a nova carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar possuírem as mesmas habilitações gerais e específicas (artigo 17.º e n.º 1 do artigo 18.º) exigidas no recrutamento de novos trabalhadores para a mesma carreira (artigo 4.º).

Registam-se apenas duas particularidades.

A primeira diz respeito à habilitação com o 12.º ano ou seu equivalente legal e que é exigida para o ingresso na carreira de técnico de emergência pré-hospitalar, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril.

A escolaridade obrigatória até aos 18 anos de idade ou com a obtenção do diploma de curso conferente de nível secundário de educação foi instituída pela Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto(31) (cfr. n.º 4 do artigo 2.º).

Embora o Regulamento Interno do Pessoal do INEM, I.P.(32), tenha passado a exigir o 12.º ano, a partir de 2006, para o ano de 2005 exigia apenas o 9.º ano de escolaridade.

Ora, pode haver trabalhadores oriundos das carreiras de técnico de emergência, de técnico operador de telecomunicações de emergência, assim como auxiliares de telecomunicações e emergência, que hajam ingressado sem o 12.º ano e não o tenham chegado a completar posteriormente.

Aqui, poderia, com efeito, ter-se admitido um tratamento diferenciado ao nível remuneratório até que esses trabalhadores provassem ter completado o 12.º ano da escolaridade.

Não foi o caso, porém. A diferenciação recaiu sobre todos, independentemente das suas habilitações literárias.

A segunda particularidade ocorre entre os auxiliares de telecomunicações e emergência.

Estes, nos termos do reproduzido artigo 17.º, para transitarem para a nova carreira de técnico de emergência pré-hospitalar, já têm de preencher os pressupostos enunciados nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 4.º

Para os trabalhadores a exercer funções no Centro de Orientação de Doentes Urgentes, é o INEM, I. P., que se acha incumbido de ministrar toda a necessária formação.

A todos assiste o direito de frequentarem um curso de formação profissional específico (1.ª parte da alínea d) do n.º 2 do artigo 4.º) e que o INEM, I. P. ficou incumbido de ministrar no prazo máximo de 18 meses contados da transição (n.º 4 do artigo 18.º) ou durante o período experimental, no caso dos trabalhadores que vierem a ser recrutados (2.ª parte da alínea d) do n.º 2, do artigo 4.º).

b) Conteúdo funcional.

Refira-se ainda que o conteúdo funcional de todos os trabalhadores da nova carreira de técnico de emergência médica pré-hospitalar é igual.

De acordo com o anexo II ao Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, e com a revogação do n.º 2.10 do anexo I e do n.º XIV do anexo II ao já citado Regulamento Interno do Pessoal do Instituto Nacional de Emergência Médica, consigna-se como conteúdo funcional:

«a) Atuação em situações de emergência pré-hospitalar aplicando cuidados de emergência necessários à preservação da vida humana, da qualidade de vida e diminuição do sofrimento no âmbito das suas qualificações;

b) Cumprimento de protocolos de atuação de decisão médica com base na formação profissional adquirida;

c) Os atos assistenciais, nomeadamente a administração de medicação, são limitados a situações em que o utente se encontre em risco iminente de vida ou de perda de membro, em que a não tentativa de realização de qualquer uma destas tarefas no imediato possa claramente condicionar a sua sobrevivência ou a qualidade de vida futura;

d) Os atos assistenciais referidos supra, para além da formação de base, estão dependentes da aprovação em ações de formação específicas homologadas pelo INEM, I. P., e são sempre realizados sob coordenação do médico coordenador do CODU.

Para o cumprimento integral das funções previstas nas alíneas anteriores, são competências do técnico de emergência médica pré-hospitalar nomeadamente, entre outras:

a) Tripular veículos de emergência pré-hospitalar e de transporte inter-hospitalar na generalidade, bem como integrar equipas de emergência pré-hospitalar em todas as situações de transporte de vítimas ou doentes, hospitais de campanha e no apoio a eventos ou concentrações de pessoas onde haja risco de ocorrência de acidentes ou vítimas;

b) Atuar em missões humanitárias, quer nacionais, quer internacionais, e prestar apoio a eventos de risco;

c) Proceder à triagem primária e evacuação de vítimas nas situações em que for superiormente determinado;

d) Proceder à montagem e desmontagem de infraestruturas médico-sanitárias de campanha;

e) Contribuir para a manutenção da prontidão dos meios de emergência;

f) Participar na elaboração de planos para dispositivos operacionais de prevenção e resposta a emergências;

g) Operar sistemas de informação e telecomunicações que equipam as centrais de emergência, os veículos de emergência e outras estruturas montadas em situações de resposta a crise e de prevenção em eventos;

h) Elaborar registo de dados e atividade exercida conforme as normas em vigor, bem como transmitir a informação ao Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) e ao hospital que receber a vítima;

i) Participar ou ministrar informação, no âmbito das competências aqui definidas, aos profissionais que integram o Sistema Integrado de Emergência Médica, bem como colaborar em ações de treino e sensibilização da população, sob supervisão médica;

j) Desempenhar as funções de atendimento das chamadas de socorro ao CODU, respetiva triagem e aconselhamento telefónico, bem como acionar, acompanhar e gerir os meios de emergência médica, de acordo com os protocolos definidos e sob supervisão de um médico coordenador».

Tudo visto, não encontrámos no conteúdo funcional nenhum elemento diferenciador minimamente razoável que justifique remunerar melhor, numa mesma carreira e categoria, os trabalhadores a recrutar do que os trabalhadores já integrados.

§5.º Da garantia constitucional de salário igual para trabalho igual.

Se alguma dúvida subsistisse quanto à aplicação aos funcionários e agentes da Administração Pública das garantias constitucionais consignadas no n.º 1, do artigo 59.º(33), ela teria de sucumbir em face da crescente aproximação do regime de trabalho em funções públicas ao regime laboral de direito privado (v. artigos 4.º e 7.º da LTFP(34).

E, não obstante, dispor o Estado de uma maior margem de decisão sobre o montante das remunerações por trabalho a prestar em funções públicas(35), isso não lhe outorga o poder de impor medidas legislativas arbitrárias.

Pelo contrário. À maior amplitude de ponderações e de escolhas corresponde outrossim uma vinculação mais intensa às pertinentes normas constitucionais(36) e a matriz constitucional dos particularismos ora garantísticos, ora restritivos dos trabalhadores em funções públicas não consente nenhuma capitis diminutio a respeito do salário igual por trabalho igual:

«Artigo 269.º

(Regime da função pública)

1 – No exercício das suas funções, os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da Administração.

2 – Os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas não podem ser prejudicados ou beneficiados em virtude do exercício de quaisquer direitos políticos previstos na Constituição, nomeadamente por opção partidária.

3 – Em processo disciplinar são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa.

4 – Não é permitida a acumulação de empregos ou cargos públicos, salvo nos casos expressamente admitidos por lei.

5 – A lei determina as incompatibilidades entre o exercício de empregos ou cargos públicos e o de outras atividades».

Aos trabalhadores em funções públicas é aplicável, sem reservas, o princípio de que para trabalho igual salário igual, não sem que, como já fomos antecipando, tenham de ser excluídas todas e quaisquer diferenciações, até pela impraticabilidade de identificar em absoluto as prestações de dois trabalhadores, em natureza, quantidade e qualidade.

Num abreviado bosquejo pela jurisprudência do Tribunal Constitucional é possível alinhar os principais limites positivos e negativos dessa margem.

Comecemos por recensear o Acórdão n.º 323/2005, de 15 de junho de 2005(37) em que se declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3, do artigo 17.º, do Decreto-Lei n.º 353-A/89, de 16 de outubro, ao permitir o percebimento de remuneração superior por funcionários que, cumulativamente, detinham menor antiguidade na categoria e na carreira.

Depois de uma exaustiva retrospeção jurisprudencial, o Tribunal Constitucional recusou admitir que, por si só, o percebimento de remuneração superior por trabalhadores com menor antiguidade na categoria acarrete a infração do princípio de salário igual por trabalho igual.

Com efeito, por seus méritos, é constitucionalmente adequado que alguns trabalhadores sejam promovidos mais depressa ou progridam dentro da sua categoria antes de alguns dos seus pares com maior antiguidade.

Aquilo que marca decisivamente as anteriores posições do Tribunal Constitucional é a haver ou não uma causa aleatória ou arbitrária:

«[A] interferência de um fator anómalo, de circunstância puramente temporal, estranho à equidade interna e à dinâmica global do sistema retributivo e sem relação com a natureza do trabalho ou com as qualificações ou experiência dos funcionários confrontados, que era responsável pela inversão das posições remuneratórias: o faseamento do descongelamento dos escalões (Acórdão n.º 584/98), ter a promoção ocorrido antes ou depois de certa data (Acórdãos n.os 254/2000, 356/2001 e 646/2004) ou o modo de operar a transição perante sucessão de regimes estatutários (Acórdão n.º 405/2003)».

Fator arbitrário é precisamente o que se encontra no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, e que precipitou a norma em infração semelhante.

Acrescentemos, pela nossa parte, que é a igualdade que deve estar ao serviço da justiça; nunca a justiça reduzida a padrões formais de igualdade. Por conseguinte há diferenciações que podem encontrar suporte na ordem constitucional.

Nesta linha, há um ponto a que o Tribunal Constitucional se tem mostrado sensível: o das diferentes habilitações.

Assim, no Acórdão n.º 548/98, de 20 de outubro(38), pode ler-se o trecho seguidamente transcrito:

«[A] justiça exige que quando o trabalho prestado for igual em quantidade, natureza e qualidade seja igual a remuneração. E reclama (nalguns casos apenas consentirá) que a remuneração seja diferente, pagando-se mais a quem tiver melhores habilitações […]».

E já então este Conselho Consultivo se pronunciara a respeito de uma admissível diferenciação positiva dos trabalhadores com melhores habilitações.

Assim, no Parecer n.º 56/92, de 27 de novembro de 1992(39), interpretando o princípio salário igual para trabalho igual, consignou-se:

«Esta regra proíbe, por um lado, que se pague de maneira diferente a trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho, têm iguais habilitações e o mesmo tempo de serviço (ao fim e ao cabo, proíbem-se as discriminações, as distinções sem fundamento material, designadamente porque assentes em meras categorias subjetivas); por outro lado, que se pague o mesmo a quem preste trabalho de quantidade, natureza e qualidade manifestamente diferentes».

Mas, nem por isso, contudo, as habilitações constituem um fator absoluto de diferenciação. Como pode ler-se no Acórdão n.º 313/89, de 9 de março(40):

«Não é, assim, irrazoável que os professores que, embora não tendo habilitação própria, já tenham cinco anos de serviço, vençam por letra superior (no caso, pela letra I) à daqueles que, embora com habilitação própria, acabaram de ingressar na subcarreira dos professores “com habilitação própria sem grau superior”, que vencem pela letra J».

Mais recentemente, no Acórdão n.º 378/2012, de 12 de julho de 2012(41), o Tribunal Constitucional empreendeu um novo e atualizado inventário da jurisprudência atinente à garantia de igual salário para trabalho igual.

Prevalecemo-nos deste labor de sistematização que levou o Tribunal Constitucional a identificar o «princípio geral da não inversão das posições relativas de trabalhadores por mero efeito da reestruturação de carreiras».

O ponto está, nem mais nem menos, numa distorção da igualdade sem outro motivo que não seja a modificação das carreiras:

«Na verdade, o Acórdão n.º 105/2006 julgou inconstitucionais, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea a) da CRP, as normas constantes dos artigos 69.º, 67.º e 45.º do Decreto-Lei n.º 557/99, de 17 de dezembro, na interpretação segundo a qual os funcionários com a mesma antiguidade na mesma carreira anterior de origem – perito tributário de 2.ª classe – mas com maior antiguidade no cargo de chefia tributária – adjunto de chefe de repartição de finanças de nível 1 – auferem remuneração inferior àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que foram nele investidos após a entrada em vigor do mesmo diploma.

Os acórdãos n.os 167/2008, 195/2008, 196/2008 julgaram inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP, a norma que resulta dos artigos 69.º, 67.º e 45.º do mesmo Decreto-Lei n.º 557/99, na interpretação segundo a qual funcionários com a mesma ou superior antiguidade na categoria de origem e com maior antiguidade no cargo de chefia tributária auferem remuneração inferior àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que foram nele investidos após a entrada em vigor do mesmo diploma. O Acórdão n.º 197/2008, por seu lado, manteve o mesmo sentido da aludida jurisprudência, embora reportando-se apenas ao disposto nos artigos 67.º e 69.º do aludido diploma legal».

Isto para, logo após, reconhecer, que, ao invés do que afirmara ser ainda tendencial, no Acórdão n.º 323/2005, já poder falar-se, passados sete anos, de uma jurisprudência consolidada, nos termos que se reproduzem:

«Os referidos arestos vieram confirmar a jurisprudência consolidada do Tribunal, a propósito das normas do regime da função pública, no sentido da vinculação – constitucionalmente imposta – à observância de um princípio geral de coerência e equidade nos sistemas de carreiras, que tem, como corolário, a proibição da inversão das posições relativas de trabalhadores, por mero efeito da entrada em vigor de um regime de reestruturação de carreiras ou de alterações do sistema retributivo, ou seja, quando a inversão é determinada pela interferência de um ‘fator anómalo’, de circunstância puramente temporal».

Se poderia, eventualmente, justificar-se um nível remuneratório mais favorável em prol dos trabalhadores transitados de anteriores carreiras, já o inverso não é de admitir, por muitas qualidades que os trabalhadores futuramente recrutados possuam. É no futuro que terão igual oportunidade de demonstrar o seu desempenho.

Ora, o que precisamente decorre do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, em contraponto ao artigo 12.º, é não dispor de nenhum argumento justo ou sequer razoável para fundamentar objetivamente a desigualdade remuneratória.

Uma das razões de ser da definição de carreiras, de posições e níveis remuneratórios é justamente a de assegurar, por meio da generalidade e abstração das normas que as disciplinam, uma razoável igualdade das remunerações devidas a quem se presume trabalhar por igual, de forma igual e em igual contexto, subtraindo boa parte da liberdade pessoal em favor da entidade empregadora.

Mais um motivo de peso para se exigir reforçadamente às vicissitudes normativas das carreiras e sistemas retributivos que não se prestem a distorcer a paridade remuneratória de trabalho igual.

Nem se oponha que a antiguidade dos trabalhadores transitados é despicienda por ter sido acumulada em outras carreiras e com categorias diferentes(42), pois como se viu o conteúdo funcional e a formação profissional especificamente requerida são sensivelmente iguais. Só artificialmente se poderia identificar uma rutura entre as carreiras extintas e a nova carreira de técnico de emergência pré-hospitalar.

Por seu turno, a igualdade de remunerações no pressuposto da igualdade de funções laborais, configura um direito cuja natureza ostenta forte analogia com a dos direitos, liberdades e garantias, seja pela densidade da norma constitucional (ou melhor, do segmento normativo) que o consagra (penúltimo inciso da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º) seja por motivo de a sua satisfação poder lograr-se independentemente da execução de programas e de políticas públicas que modifiquem condições deficitárias na economia e na sociedade.

Ainda que algumas concretizações possam estar condicionadas, não é por se encontrar sistematicamente no título III da Parte I (direitos económicos, sociais e culturais) que deixa de beneficiar do regime específico dos direitos, liberdades e garantias(43), como se estatui no artigo 17.º da Constituição.

Aplanadas algumas arestas da clivagem que outrora apartava a maior parte dos direitos fundamentais em dois mundos, somos, em larga medida, tributários desta norma, e de quanto serviu de esteio à construção do Estado de direito democrático. Nem por isso deixa de relevar hodiernamente quanto nela se dispõe:

«Artigo 17.º

(Regime dos direitos, liberdades e garantias)

O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga»

Deste específico regime, parece bem de ver que, para o tema da consulta, sobressaem a aplicabilidade direta e a vinculação primária das entidades públicas, de acordo com a pertinente norma constitucional:

«Artigo 18.º

(Força jurídica)

1 – Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. […]».

§7.º Conclusões.

Em face do que vem exposto, formulam-se as conclusões seguidamente enunciadas:

1.ª Ocorre uma contradição entre a previsão e a estatuição da norma contida no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, porquanto ao preencher-se a previsão – «Sempre que, por aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, a remuneração base a que atualmente têm direito seja inferior à 1.ª posição remuneratória da categoria para a qual transitam […]» – a estatuição já está atribuída.

2.ª Uma vez que o preenchimento da previsão do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, pressupõe aplicar o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, então, pressupõe criar automaticamente «um nível remuneratório não inferior ao da primeira posição da categoria para a qual transitam» e cujo montante há de corresponder, pelo menos, ao da remuneração base a que já tinham direito (cfr. estatuição do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro).

3.ª Contudo, a partir do sentido que inequivocamente o legislador quis atribuir ao preceito, é possível e razoável uma correção hermenêutica que lhe devolva pleno sentido, ainda que diferenciador de remunerações para trabalhadores na mesma carreira e categoria.

4.ª A garantia constitucional de salário igual para trabalho igual (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição) aplica-se aos trabalhadores em funções públicas e sem desvios ou restrições consentidos nem pelo artigo 269.º da Constituição nem por outro qualquer preceito constitucional.

5.ª O disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, infringe direta e ostensivamente a alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, na parte em que reposiciona os trabalhadores do INEM, I. P., transitados para a nova carreira especial e categoria de técnico de emergência pré-hospitalar em posição e nível remuneratório inferiores aos dos novos trabalhadores a recrutar e ingressar na mesma categoria. Obriga mesmo a que os primeiros sejam reposicionados em «nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam»

6.ª Introduziu-se uma distorção remuneratória desconforme com a garantia de salário igual para trabalho igual, pois não se encontram diferenças ao nível do conteúdo funcional a desempenhar por uns e outros trabalhadores do INEM, I. P., nem, indistintamente, ao nível das habilitações quer gerais quer específicas, designadamente a idêntica formação profissional requerida para exercer as mesmas funções.

7.ª A organização do trabalho em funções públicas segundo carreiras e destas em categorias com várias posições remuneratórias de valor crescente destina-se a assegurar a igualdade e a fomentar um tratamento justo, não podendo, ao invés, constituir fator das distorções que justamente se pretendem evitar.

8.ª Decorre da garantia de salário igual para trabalho igual, na expressão do Tribunal Constitucional, um «princípio geral da não inversão das posições relativas de trabalhadores por mero efeito da reestruturação de carreiras».

9.ª Este princípio vincula diretamente as entidades públicas (cfr. n.º 1 do artigo 18.º da Constituição), uma vez que a referida garantia, apesar de sistematicamente situada entre os direitos económicos, sociais e culturais, ostenta natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (cfr. artigo 17.º da Constituição).

10.ª De modo a evitar distorções, como aquela que surge por efeito da norma controvertida, o n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12 A/2008, de 27 de fevereiro, contém uma cláusula que salvaguarda, como mínimo, o nível remuneratório correspondente à 1.ª posição da categoria para a qual transitam e outra que fixa, como máximo, o montante da remuneração base a que têm direito ao tempo da transição, se aquele montante for superior. Por conseguinte, não abre as portas a acréscimo algum incompatível com a alínea b) do n.º 2 da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, até porque os acréscimos que esta norma veda pressuporiam aplicar o n.º 1, e não o n.º 2, da citada Lei n.º 12-A/2008.

11.ª Contudo, apesar da incompatibilidade do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, com o artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e com o artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, o certo é que nenhum destes atos legislativos possui valor reforçado, em termos de fundar um juízo de ilegalidade constitucional (inconstitucionalidade indireta qualificada).

12.ª Em todo o caso, a inconstitucionalidade material direta do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, é motivo mais do que suficiente para o legislador empreender com brevidade a sua revisão em ordem a pôr termo à discriminação iniciada com a sua entrada em vigor.

13.ª Não obstante proibidas as valorizações remuneratórias dos titulares de cargos políticos e dos trabalhadores em funções públicas, por meio das sucessivas leis orçamentais (v.g. n.º 1 do artigo 38.º do OE 2015, prorrogado no OE 2016 [Cfr. n.º 1 do artigo 18.º] e no OE 2017 [Cfr. n.º 1 do artigo 19.º]) excluíram-se os ajustamentos remuneratórios inerentes à transição dos trabalhadores em funções públicas para carreiras revistas (n.º 16 do artigo 38.º do OE 2015). Trata-se de um corolário da garantia constitucional de salário igual para trabalho igual (cfr. alínea a] do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição).

14.ª Por conseguinte, a correção do reposicionamento remuneratório dos trabalhadores do INEM, I. P., transitados para a carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar possui inteira cobertura nas leis orçamentais para os anos económicos de 2016 e de 2017, ao admitirem os ajustamentos decorrentes da garantia de salário igual para trabalho igual na revisão das carreiras dos trabalhadores em funções públicas que ainda não o tivessem sido.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 19 de julho de 2017.

Maria Joana Raposo Marques Vidal – Eduardo André Folque da Costa Ferreira (Relator) (Com declaração de voto em anexo do próprio) – João Eduardo Cura Mariano Esteves – Vinício Augusto Pereira Ribeiro – Maria Isabel Fernandes da Costa – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Fernando Bento – Maria Manuela Flores Ferreira – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita (Com declaração de voto em anexo) – Amélia Maria Madeira Cordeiro (Acompanho a declaração de voto apresentada pelo Relator).

Declaração de voto

Adiro à declaração de voto do relator no sentido de que a administração deveria adotar uma interpretação do artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, conforme a Constituição com o sentido normativo preconizado nessa declaração: O recrutamento de novos trabalhadores para a base da carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar desencadeia o termo resolutivo da posição e nível remuneratórios previstos no artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 19/2016 para os trabalhadores transitados, determinando o respetivo reposicionamento em igualdade com os trabalhadores ingressados ao abrigo do novo regime, nos termos do disposto pelo artigo 104.º, n.º 2, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro.

Sem embargo de o elemento literal parecer apontar para o sentido normativo inconstitucional, em violação flagrante do disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, a natureza de disposição final e transitória especial do referido preceito, o elemento sistemático (em particular os limites das condicionantes de valorizações remuneratórias em matéria de transição de trabaçhadores em funções públicas para carreiras revistas) e o elemento teleológico revelado no programa normativo anunciado no preâmbulo do diploma – em particular a pretensão de «aperfeiçoar a gestão dos recursos humanos e a motivação dos profissionais de saúde», sendo certo que estabelecer uma discriminação negativa de trabalhadores com maior antiguidade sem qualquer fundamento material apenas poderia gerar legítima desmotivação desses trabalhadores. Esses fatores permitem, no plano hermenêutico, a defesa de uma redução teleológica no sentido de que «a remuneração base inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam» os trabalhadores referidos no artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 19/2016 cessa com a admissão de trabalhadores em concurso realizado ao abrigo do novo regime.

Em linha com a solução defendida pelo relator, permitimo-nos enfatizar que a mesma é sustentada na defesa de parâmetros hermenêuticos conformados pela interpretação da lei ordinária à luz da adequação de valores com desenho constitucional. Solução preconizada que se integra numa matriz conforme o princípio da igualdade, no sentido de «tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes)», tendo ainda presente a ideia de «tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir, de harmonia com os padrões da Constituição material (acrescentando-se, assim, uma componente ativa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei»)(44).

Abordagem que, sublinhe-se, é congruente com a doutrina constitucional sintetizada por Gomes Canotilho, sobre o princípio da igualdade enquanto «instrumento hermenêutico de interpretação de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei»(45). – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita.

Declaração de voto

1 – Em meu entender, o disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, admite uma interpretação que, sem perder de vista a letra da lei – antes pelo contrário, valorizando um dos elementos textuais – presta-se a relegar a colisão com a norma constitucional para momento futuro, ou seja, para quando vierem a ingressar efetivamente na mesma carreira e categoria os trabalhadores que sejam superiormente remunerados (pelo nível 6 correspondente à primeira posição remuneratória).

Encontra-se ao alcance do Governo adotar providência legislativa que consigne essa operação hermenêutica, que desenvolveremos infra, ou fixá-la internamente e sugerir ao INEM, I. P. que proceda de igual modo.

A margem ao dispor do Governo, porém, será esta, apenas, considerando a elevada probabilidade de uma declaração de inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional possa vir a proferir, em face de eventual iniciativa de fiscalização desencadeada nos termos do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 281.º da Constituição.

Acresce tratar-se de um poder funcional com o sentido de constituir outrossim um dever, em nome do princípio da constitucionalidade (cfr. artigo 3.º da Constituição).

2 – Há um elemento literal não despiciendo, à luz do teor da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, e que pode preservar a unidade da ordem jurídica.

Por seu turno, a natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias inculca a aplicação direta do preceito constitucional; aplicação direta que pode vingar por meio de uma interpretação constitucionalmente orientada(46), a qual nos conduz a aproximar o reposicionamento remuneratório e a aplicação concreta da norma constitucional vulnerada.

Esse elemento, encontramo-lo na parte final do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, em que pode ler-se:

«[…] os trabalhadores são reposicionados na posição remuneratória, automaticamente criada, de nível remuneratório inferior à 1.ª posição da categoria para a qual transitam, de montante pecuniário correspondente à remuneração base a que atualmente(47) têm direito».

O enunciado fixa-nos num tempo pretérito, ao desvendarmos o sentido do advérbio «atualmente».

A fixação temporal da norma – a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril – faz com que se esgote no passado e reclama a aplicação direta do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º da Constituição, assim que forem recrutados novos trabalhadores para as mesmas funções e categoria, concluindo o reposicionamento ou encetando-lhe uma fase complementar, a fim de alcançar a paridade remuneratória entre iguais.

Por outras palavras, não se trata – outrora e para sempre – da remuneração base, no montante de (euro) 692,71, a que os trabalhadores em trânsito para a nova carreira especial tinham direito, ao tempo da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril.

Era-o naquele momento, só então, «atual», em que o legislador fixou um reposicionamento interino, até que fossem providos novos trabalhadores na base da carreira e da categoria, para os quais se dispusera no artigo 12.º e sua remissão para o anexo II uma posição remuneratória de montante mais elevado.

A aplicação do direito mostra-se dinâmica, a menos que seja a própria norma jurídica a fixar, expressa ou implicitamente, o tempo em que se esgota a sua aplicação.

É, em meu entender, o caso do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, vinculado positiva e negativamente ao momento do que era então, e só então, atual: o momento em que entrou em vigor.

A norma furtou-se à generalidade e, em boa parte, à abstração, pois aplica-se apenas a um conjunto determinado de trabalhadores (1018) e num momento irrepetível (entre 16 de abril de 2016 e o ingresso de novos trabalhadores na carreira e na categoria).

Assim que um trabalhador recrutado para a mesma carreira e categoria vier a adquirir um vínculo de emprego público na recém-criada carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar e a adquirir o direito à remuneração base estipulada na primeira posição da categoria de ingresso (nível 6 = (euro) 738, 05) já não há como continuar a aplicar o n.º 3 do artigo 18.º aos trabalhadores anteriormente vinculados.

A remuneração base dos trabalhadores transitados para a nova carreira de técnico de emergência pré-hospitalar é, a partir de então, («atualmente», diríamos) aquela que lhes outorga o direito fundamental a igual salário para igual trabalho e cuja analogia com os direitos, liberdades e garantias obriga a uma aplicação direta integrativa.

A remuneração base a que então têm direito não é mais nem pode ser inferior à dos trabalhadores a ingressar na mesma carreira e com o mesmo conteúdo funcional.

3 – Como já se afirmou, a aplicação direta da norma constitucional enunciada na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição tem potencialidades hermenêuticas que importa explorar e ponderar.

Essa virtualidade está presente em outras normas que concretizaram, em iguais circunstâncias, a garantia constitucional.

A norma do n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, conquanto não possa ter-se como diretamente vinculada a um suposto valor reforçado da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, nem da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, não pode descurar, na sua interpretação, preceitos destes atos legislativos para os quais reenvia ou cuja aplicação toma expressamente como pressuposto no enunciado dispositivo, uma vez que esses mesmos preceitos veiculam a salvaguarda da norma constitucional (da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição).

Isto, já para não falar na expressa filiação estabelecida a nível preambular pelo diploma, em cujo proémio se lê:

«Ao abrigo do disposto no artigo 41.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 42.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, no artigo 84.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo àquela lei, no artigo 101.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta […]».

Queremos com isto significar que, uma vez admitidos novos trabalhadores em funções públicas para a carreira e categoria de técnico de emergência pré-hospitalar, concretiza-se (e atualiza-se) o direito dos demais trabalhadores com trabalho igual a perceberem salário igual.

Os critérios de posicionamento remuneratório passam a ser os da segunda parte do n.º 2 do artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, e do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, pois são os mais adequados a providenciar pela aplicação direta do preceito constitucional convocado.

E haverá de ter-se presente, ademais, o já citado n.º 16 do artigo 38.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2015), cujo teor vem sendo prorrogado até hoje, e que exclui da proibição de valorização remuneratória casos como o da transição para a carreira de técnico de emergência pré-hospitalar.

Sob pena de a norma do n.º 3 do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, vir a ser declarada inconstitucional com força obrigatória geral e, porventura, sem a limitação de efeitos consignada no n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, havemos, pois, de a considerar meramente transitória: a caducar com o reposicionamento provisório que dela resultou enquanto não houvesse um termo de comparação real, concreto, mas apenas virtual.

Mal se concretize (ou se revele atual) a colisão com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, ou seja, logo que paga remuneração base desigual para trabalho fundamentalmente igual, os trabalhadores discriminados têm direito a ver substituída a remuneração base até ao limite da paridade com os prestadores de trabalho igual acabados de ingressar na sua carreira e categoria.

É, de resto, a solução que o Código do Trabalho aponta contra a discriminação de género estatuída nos n.os 1 e 2 do artigo 26.º por via de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou de regulamento empresarial, e que o n.º 3 estende a outras formas de discriminação e até a outras disposições (sem excluir disposições regulamentares nem legislativas).

«Artigo 26.º

(Regras contrárias ao princípio da igualdade e não discriminação)

1 – A disposição de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou de regulamento interno de empresa que estabeleça profissão ou categoria profissional que respeite especificamente a trabalhadores de um dos sexos considera-se aplicável a trabalhadores de ambos os sexos.

2 – A disposição de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou de regulamento interno de empresa que estabeleça condições de trabalho, designadamente retribuição, aplicáveis exclusivamente a trabalhadores de um dos sexos para categoria profissional correspondente a trabalho igual ou a trabalho de valor igual considera-se substituída pela disposição mais favorável aplicável a trabalhadores de ambos os sexos.

3 – O disposto nos números anteriores é aplicável a disposição contrária ao princípio da igualdade em função de outro fator de discriminação. […]».

Esta norma é ainda de maior significado se tivermos presente a remissão que a LTFP dispõe, a título subsidiário, para o Código do Trabalho, em matéria de «igualdade e não discriminação» (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 4.º), sem prejuízo das necessárias adaptações.

A aplicação direta do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 59.º deve, por maioria de razão, fazer-se deste modo quanto a trabalhadores em funções públicas vinculados a um reposicionamento remuneratório que esgotou a sua aplicação no tempo, que é irrepetível.

Rui Medeiros(48) faz notar que o combate à discriminação remuneratória no trabalho, com exceção do Decreto-Lei n.º 392/79, de 20 de setembro, restrito à igualdade de género, quase sempre resultou da aplicação direta do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição.

Algo que, como indica, fora já recenseado por Maria do Rosário Palma Ramalho(49). A Autora refere-se ainda a uma importantíssima norma desse decreto-lei(50), e hoje recuperada no n.º 2 do artigo 26.º do Código do Trabalho(51), e que ordena «a substituição automática da remuneração mais baixa prevista em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho para os trabalhadores de um sexo, que desempenhem trabalho igual ou de valor igual, pela remuneração mais alta prevista para outra categoria de conteúdo funcional igual ou equivalente». E não tem dúvidas em reconhecer-lhe plena precetibilidade a ponto de se aplicar diretamente mesmo às entidades privadas(52).

4 – Em suma, considero cumprir ao Governo e ao INEM, I. P., concluir o reposicionamento dos trabalhadores da carreira de técnico de emergência pré-hospitalar visados pelo n.º 3 do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, no nível remuneratório 6 (primeira posição remuneratória da categoria) concomitantemente com a admissão dos novos trabalhadores a recrutar no procedimento concursal iniciado.

Nada o impede, se for entendido como útil ou conveniente, de fixar à norma este sentido como interpretação autêntica por decreto-lei em sintonia com as disposições vindas de citar, designadamente a do n.º 16 do artigo 38.º do Orçamento do Estado para 2015 e que, repetidamente, viu os seus efeitos prorrogados. – Eduardo André Folque da Costa Ferreira.

(1) Aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, na redação que lhe foi conferida pela 14.ª alteração, aprovada pela Lei n.º 9/2011, de 12 de abril.

(2) Regime de Vinculação, de Carreiras e de Remunerações do Trabalho em Funções Públicas, na redação da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro. Embora revogada pela alínea c) do n.º 1 do artigo 42.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, com efeitos a 1 de agosto de 2014, conserva em vigor as normas transitórias contidas nos artigos 88.º a 115.º

(3) Aprova a Lei do Trabalho em Funções Públicas. Última alteração introduzida com a Lei n.º 25/2017, de 30 de maio.

(4) Cfr. Ofício n.º 5201, de 7 de julho de 2017.

(5) Cfr. Aviso n.º 2123-A/2017, de abertura de procedimento concursal comum, de 23 de fevereiro de 2017, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 40, de 24 de fevereiro de 2017, em cujo n.º 16.4. se fixa o seguinte: «Em conformidade com o Anexo II a que se refere o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, a posição remuneratória de referência é a 1.ª posição remuneratória da categoria de Técnico de Emergência Pré-Hospitalar, a que corresponde o nível remuneratório 6 da Tabela única de Remunerações, aprovada pela Portaria n.º 1553-C/2008, de 31 de dezembro, correspondente a (euro) 738,05 (setecentos e trinta e oito euros e cinco cêntimos».

(6) Despacho de Sua Excelência a Conselheira Procuradora-Geral da República, de 7 de julho de 2017.

(7) Trata-se, em rigor, da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho: o diploma preambular que aprovou a Lei do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).

(8) Como se explica no pedido de consulta, de 1038 trabalhadores, apenas 20 têm remuneração base superior a (euro) 692, 71 e, presume-se, igual ou inferior a (euro) 738,05.

(9) Cuja redação não é isenta de contradições, como melhor veremos infra.

(10) O acordo coletivo entre o Instituto Nacional de Emergência Médica, I. P. e a Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública, nada estipulou em matéria de remunerações (cfr. Acordo Coletivo de Trabalho n.º 6/2011, de 21 de junho, in Diário da República, n.º 126, 2.ª série-J3, de 4 de julho de 2011).

(11) Cujo regime orgânico consta do Decreto-Lei n.º 34/2012, de 12 de fevereiro, com as retificações enunciadas na declaração de retificação n.º 17/2012, de 4 de abril. A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro (aprovou o Orçamento do Estado para 2015), no seu artigo 186., alterou o disposto no artigo 9.º

(12) Aprovado pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro.

(13) Aprovado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (cfr. n.º 1 do artigo 18.º).

(14) E também pelo n.º 1 do artigo 19.º do Orçamento do Estado para 2017, aprovado pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro.

(15) Introdução ao Pensamento Jurídico, 6.ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1988, p. 68 e seguintes.

(16) No n.º 1 do artigo 104.º, da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, ao invés, pressupõe-se a identidade.

(17) O Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, por força do artigo 22.º, entrou em vigor no dia imediatamente seguinte ao da sua publicação.

(18) E dispõe-se nessa alínea b) do n.º 1 do artigo 112.º o seguinte: «1 – Tendo em vista a sua conformação com o disposto na presente lei, os suplementos remuneratórios que tenham sido criados são revistos no prazo de 180 dias por forma a que: […] b) Sejam integrados, total ou parcialmente, na remuneração base»

(19) Na quase totalidade dos trabalhadores visados (98,07 %).

(20) Aprovado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, cujo texto foi retificado nos termos da declaração de retificação n.º 10/2016, de 25 de maio.

(21) Aprovado pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro.

(22) Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, retificada nos termos da declaração de retificação n.º 5/2015, de 26 de fevereiro, e alterada pela Lei n.º 159-E/2015, de 30 de dezembro.

(23) Cfr. n.º 16 do artigo 38.º do OE 2015.

(24) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 323/2005, de 15 de junho (proc. 499/04), publicado in Diário da República, 1.ª série, n.º 198, de 14 de outubro de 2005.

(25) Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 313/89, n.º 584/98, n.º 323/2005, n.º 642/2005 e n.º 378/2012.

(26) Assim, o Parecer n.º 519/2000, de 12 de julho de 2001 (Diário da República, 2.ª série, n.º 30, de 5 de fevereiro de 2002), o Parecer n.º 86/2005, de 13 de outubro (sob acesso reservado), o Parecer n.º 104/2005, de 18 de janeiro de 2007 (sob acesso reservado) e o Parecer n.º 106/2006, de 6 de dezembro de 2007 (Diário da República, 2.ª série, n.º 8, de 11 de janeiro de 2008).

(27) Publicado in Diário da República 1.ª série-B, n.º 201, de 19 de outubro de 2005.

(28) Cfr. Decisão n.º 85/368/CEE, do Conselho das Comunidades Europeias, de 16 de julho.

(29) E no prazo máximo de 18 meses, de acordo com o n.º 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril.

(30) Centro de Orientação de Doentes Urgentes.

(31) Alterada pela Lei n.º 65/2015, de 3 de julho.

(32) Aprovado pelo Despacho Normativo n.º 46/2005, do Ministro das Finanças e da Administração Pública e do Ministro da Saúde, de 19 de setembro de 2005 (Diário da República 1.ª série-B, n.º 201, de 19 de outubro de 2005).

(33) Algo que o Tribunal Constitucional sempre repudiou. V., por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 474/02, de 19 de novembro de 2002 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 292, de 18 de dezembro de 2002) que deu por verificada a inconstitucionalidade por omissão legislativa apta a conceder exequibilidade ao disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 59.º, justamente em relação a trabalhadores da Administração Pública.

(34) Cuidam, respetivamente, da remissão para o Código do Trabalho de amplas e nucleares matérias concernentes ao trabalho em funções públicas, e da centralidade do contrato enquanto modalidade típica de prestação de trabalho em funções públicas.

(35) Neste sentido, v. Rui Medeiros, Anotação ao Artigo 59.º, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Wolters Kluver Portugal & Coimbra Editora, 2010, Coimbra, p. 1152.

(36) V., nomeadamente, Guilherme Machado Dray, O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho – sua aplicabilidade no domínio específico da formação de contratos de trabalho, Ed. Almedina, Coimbra, 1999, pp. 135 e seguintes; Abílio Neto, Conteúdo e alcance do princípio constitucional “para trabalho igual salário igual”, in I Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias, Ed. Almedina, Coimbra, 1998, pp. 375 e seguintes.

(37) Diário da República, 1.ª série-A, n.º 198, de 14 de outubro de 2005.

(38) 3.ª Secção, processo n.º 456/98, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980584.

(Consulta em 13 de julho de 2017)

(39) Parecer inédito (acesso reservado em www.dgsi.pt/pgrp.nsf).

(40) 2.ª Secção, processo n.º 265/88, in Diário da República, 2.ª série, de 16 de junho de 1989.

(41) 2.ª Secção, processo n.º 435/10, in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos/20120378.

(consultado em 11 de julho de 2017).

(42) Sobre a distinção, v. a interessantíssima declaração de voto do Conselheiro Mário Torres em declaração lavrada no termo do já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 323/2005, de 15 de junho de 2005.

(43) Neste sentido, V. José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., 2007, Coimbra Ed., Coimbra, p. 770; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Anotação ao Artigo 17.º, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Wolters Kluver Portugal & Coimbra Editora, 2010, Coimbra, p. 306.

(44) Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, Coimbra Editora (4.ª edição), 2008, pp. 255-256.

(45) Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2003, p. 1310.

(46) Sobre a distinção entre, por um lado, interpretação conforme com a Constituição, enquanto critério de preferência entre os vários sentidos possíveis da norma previamente interpretada segundo os cânones elementares, e por outro lado, interpretação orientada pela Constituição, enquanto participação da norma constitucional já na operação hermenêutica, v. Miguel Nogueira De Brito, Introdução ao Estado do Direito, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa Ed., Lisboa, 2017, pp. 222 e seguintes; Cristina Queiroz, Justiça Constitucional, Petrony Ed., Lisboa, 2017, pp. 217 e seguintes, em especial, pp. 220 e seguintes.

(47) Sublinhado nosso.

(48) O Direito Fundamental à Retribuição: em especial, o princípio a trabalho igual, salário igual, Universidade Católica Ed., Lisboa, 2016, p. 77, nota 318.

(49) Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 5.ª ed., Ed. Almedina, Coimbra, 2014, p. 680.

(50) Cremos tratar-se do n.º 2 do artigo 12.º

(51) Aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, com a redação conferida pela última alteração, a cargo da Lei n.º 28/2016, de 23 de agosto.

(52) Ob. cit., p. 685 (v. com particular interesse a nota 746 com vasto levantamento da jurisprudência dos tribunais comuns superiores, nesta matéria).

Este parecer foi homologado por despacho de 25 de julho de 2017, de Sua Excelência o Secretário de Estado da Saúde.

Está conforme.

Lisboa, 4 de agosto de 2017. – O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos Adérito da Silva Teixeira.»

Parecer da PGR: Responsabilidade financeira pelos encargos resultantes do internamento compulsivo de cidadãos inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal


«Declaração de Retificação n.º 562/2017

Por ter sido publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 152, de 08 de agosto de 2017, o Parecer n.º 34/2016, do Conselho Consultivo com inexatidão, é republicado.

8 de agosto de 2017. – O Secretário-Adjunto da Procuradoria-Geral da República, Rui Nuno Almeida Dias Fernandes.

Parecer n.º 34/2016

Medida de segurança privativa de liberdade – Saúde mental

Recluso – Internamento – Execução de penas

1 – A aplicação de medida de segurança de internamento de inimputáveis depende, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, de sentença judicial transitada em julgado (ao abrigo das regras processuais penais) sobre a verificação dos seguintes pressupostos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente no momento da prática do facto;

c) Juízo de probabilidade, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, sobre a existência de fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2 – O internamento de inimputáveis ao abrigo do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal é configurado como uma reação criminal inconfundível com intervenções determinadas por fins terapêuticos de saúde mental que visem primariamente assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão.

3 – A natureza criminal das medidas privativas da liberdade determina que a respetiva execução seja regulada pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.

4 – O regime relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental tem suporte em pressupostos inconfundíveis com a aplicação das medidas de segurança previstas pelo Código Penal não sendo regulado pelo CEPMPL.

5 – As componentes administrativas e financeiras da execução das medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal devem ser asseguradas pelo Ministério da Justiça atento, nomeadamente, o disposto no artigo 2.º, alínea e), da Lei Orgânica do Ministério da Justiça aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.

6 – Na organização do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), nos termos dos artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro.

7 – Arquitetura organizacional refletida na incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL: Garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de acordo com as respetivas finalidades reportadas à «reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade» (nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL).

8 – O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde cujo objetivo é a efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva, o qual funciona sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde sendo regulado, nomeadamente, pelo Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.

9 – O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS independentemente de estar sujeito ou não a uma medida penal privativa da liberdade decorre da universalidade do SNS consagrada no artigo 64.º, n.º 2, da Constituição.

10 – Em coerência com a universalidade do SNS, o artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do CEPMPL prescreve de forma expressa que a execução das medidas privativas da liberdade garante ao recluso, nomeadamente, o direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos e o artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL que o recluso é, para todos os efeitos, utente do SNS.

11 – Integra as atribuições do Ministério da Justiça assegurar o financiamento da generalidade dos custos públicos inerentes ao internamento de inimputáveis condenados ao abrigo do Código Penal em medida privativa da liberdade.

12 – Incumbe, em primeira linha, à DGRSP providenciar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, pelo efetivo exercício do direito de acesso do recluso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

13 – A circunstância de a medida de segurança privativa de liberdade ser cumprida em unidade de saúde mental não prisional, ao abrigo do artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL, não altera a respetiva natureza penal nem, salvo norma expressa em sentido contrário, a consequente responsabilidade da DGRSP pela dimensão administrativa da respetiva execução.

14 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras relativas ao cumprimento de medidas privativas da liberdade em unidade de saúde mental deve ser objeto de regulação em diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL.

15 – Enquanto não for publicado o diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL, os encargos decorrentes da específica situação de reclusão de inimputáveis que cumprem medida de segurança privativa da liberdade em unidade de saúde mental e de imputáveis que cumprem pena nesse tipo de instituições subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais enquanto departamento estadual que deve garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

16 – Sem prejuízo das conclusões anteriores, os encargos relativos à prestação de cuidados de saúde por instituições do SNS a reclusos integram os custos de financiamento do SNS e, salvo acordo de cooperação em sentido contrário das entidades envolvidas, não podem ser reclamados ao Ministério da Justiça na parte em que quanto a utentes do SNS em liberdade devessem ser suportados por esse sistema público de saúde.

17 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras necessárias para assegurar o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos cujo cumprimento de medidas privativas da liberdade decorre em estabelecimento prisional deve ser objeto de regulação por diploma próprio previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL, o qual, contudo, ainda não foi publicado.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 2 de março de 2017.

Maria Joana Raposo Marques Vidal – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita (Relator) – Eduardo André Folque da Costa Ferreira – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Fernando Bento – Maria Manuela Flores Ferreira – João Eduardo Cura Mariano Esteves – Maria Isabel Fernandes da Costa – Vinício Augusto Pereira Ribeiro – Francisco José Pinto dos Santos – Amélia Maria Madeira Cordeiro.

Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça

Senhor Secretário de Estado da Saúde

Excelências:

I. Relatório

A consulta foi determinada por despacho de Suas Excelências a Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça e o Senhor Secretário de Estado da Saúde sobre responsabilidade financeira pelos encargos resultantes do internamento compulsivo de cidadãos inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal(1).

Cumpre emitir parecer(2).

II. Fundamentação

§ II.1 Objeto do parecer e enquadramento metodológico

A questão objeto de consulta foi colocada pelos membros do Governo competentes ao abrigo do disposto no artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (EMP).

A consulta visa a pronúncia sobre uma questão jurídico-prática no quadro funcional da Administração Pública.

As entidades consulentes identificam a dúvida objeto da consulta, tendo a questão sido «enunciada»(3) nos seguintes termos:

«Definir qual o Ministério financeiramente responsável pelos encargos decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal, se o Ministério da Saúde ou o Ministério da Justiça»(4).

De seguida, passaram a ser sintetizadas as «perspetivas» divergentes do Ministério da Saúde (artigos 13 a 25) e do Ministério da Justiça (artigos 26 a 32).

Embora na apresentação do problema e na síntese da argumentação relativa à «perspetiva do Ministério da Saúde» também seja referida a problemática do internamento ao abrigo da Lei de Saúde Mental (sobre o respetivo regime cf. infra § II.2.2), a questão enunciada reporta-se exclusivamente ao internamento de «inimputáveis» decretado «ao abrigo do Código Penal» (diploma que, neste segmento, apenas regula as medidas de segurança, cf. infra § II.2.1), e a condição de inimputável apenas releva para efeito de aplicação dessas medidas (sendo conceito estranho à Lei de Saúde Mental).

Acrescente-se que no plano da execução das medidas o único regime legal referenciado nas duas perspetivas divergentes é o do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (cf. infra § II.3)(5).

A única documentação de suporte da consulta foi a fundamentação da consulta subscrita por Suas Excelências a Senhora Secretária de Estado Adjunta e da Justiça e o Senhor Secretário de Estado da Saúde.

Sendo o parecer conformado pela teleologia e balizas da dúvida suscitada pelas entidades consulentes, a ponderação necessária para as respostas deve ser objeto de análise própria pelo Conselho Consultivo na fundamentação que se segue. Plano em que se deve realçar um outro aspeto: A consulta que originou este parecer visa um comando relativo a condições de ação e não a objetivos, o que obrigatoriamente determina o trabalho a empreender pelo Conselho Consultivo, na medida em que se deve, em sintonia com a vocação técnica deste ente consultivo, cingir às pautas de interpretação do direito positivo.

A estrutura do parecer vai ser determinada pelo escopo da consulta e pautas acabadas de expor, desdobrando-se pelas seguintes duas partes:

§ II.2 Regime sobre aplicação de medidas de segurança e internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal;

§ II.3 As responsabilidades administrativas pela execução de medidas de segurança privativas da liberdade.

Depois da fundamentação serão enunciadas as conclusões do parecer visando responder à questão colocada na consulta.

§ II.2 Regime sobre aplicação de medidas de segurança e internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal

§ II.2.1 A consulta tem como objeto um problema específico sobre a definição do «ministério financeiramente responsável pelos encargos decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis decretado judicialmente ao abrigo do Código Penal».

Questão que exige uma referência, ainda que sintética, ao regime substantivo sobre as medidas de segurança no direito penal português. Esse regime tem na base o conceito de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica regulado no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal (CP) que, seguindo a perspetiva do presidente da comissão revisora Eduardo Correia(6), adotou o método misto biopsicológico-normativo, estabelecendo que «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação». Conceito ampliado no n.º 2 do artigo 20.º, pois pode abranger, ainda, «quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída»(7).

Relativamente a uma das questões controversas na doutrina penalista, a lei portuguesa adotou um conceito de inimputabilidade amplo, abrangendo a inimputabilidade acidental. Inimputabilidade suscetível de ser determinada por fatores exógenos, nomeadamente, se por força do consumo de estupefacientes o agente «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação», com os limites inerentes à adoção legal da teoria sobre actio libera in causa(8).

Por outro lado, a inimputabilidade reporta-se de forma atomizada ao(s) momento(s) da prática(s) do(s) factos(s) individualizadamente considerado(s)(9).

Inimputabilidade que exime o autor ou comparticipante do crime de uma pena mas não equivale à ausência de reação criminal relativamente ao comportamento do agente que preenche o facto ilícito típico.

O princípio da legalidade da lei criminal em Portugal abrange duas tipologias de reações criminais reconhecidas, desde logo, no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição: «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»(10).

Medidas de segurança de internamento aplicáveis a inimputáveis reguladas no artigo 91.º, n.º 1, do CP: «Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.»

Medidas teleologicamente conformadas por necessidades de prevenção especial e pelos interesses públicos de segurança e tutela do ordenamento jurídico(11), que, de acordo com a fórmula legal, compreendem os seguintes requisitos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente;

c) Juízo de probabilidade positivo sobre a existência fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado.

Medidas de segurança em que o princípio da proporcionalidade tem incidência na perigosidade criminal do agente e consequente ponderação da concreta medida, a dimensão criminal da medida de segurança e a sua proximidade com a pena como consequência jurídica do crime reflete-se, nomeadamente, na sua conexão com o facto e a tutela da respetiva gravidade ao nível da lei penal(12).

Implicações que revelam a operatividade nesta sede do princípio da tipicidade penal, comunhão de exigências expressamente referida pelo artigo 29.º, n.º 1, da Constituição: Ninguém pode sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. Constitucionalização dos limites à aplicação das medidas de segurança enquanto reações criminais que implica a proibição de se aplicarem medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior (artigo 29.º, n.º 3) e que ninguém possa sofrer medida de segurança mais grave do que a prevista no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos (artigo 29.º, n.º 4), valendo também neste domínio o princípio da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4).

Dimensão criminal também revelada nas referências abstratas delimitadoras da duração concreta do internamento reportadas às molduras das penas criminais(13) na reserva judicial sobre a cessação da medida e respetivos parâmetros de avaliação do término do internamento, prescrevendo-se que o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem(14).

Medidas de segurança objeto de uma reserva judicial que abrange o respetivo decretamento (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição) e a suscetibilidade da respetiva prorrogação, nomeadamente, em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, admitindo-se que as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade possam ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial (nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da Constituição).

§ II.2.2 A questão suscitada na consulta circunscreve-se ao internamento de inimputáveis ao abrigo do Código Penal, estando excluída a problemática do internamento compulsivo por objetivos relativos à saúde mental do internando(15).

A Lei de Saúde Mental (LSM) aprovada pela Lei n.º 36/98, de 24 de julho(16), reporta-se a uma matéria distinta do internamento de inimputáveis regulado pela lei penal. A prática de um ilícito penal não constitui pressuposto do internamento compulsivo regulado na LSM, o seu decretamento não depende de qualquer juízo sobre a prática de factos ilícitos típicos, e a prevenção criminal não constitui um elemento necessário das medidas aí previstas às quais é estranho o conceito inimputabilidade no momento da ocorrência de determinados factos.

Com efeito, como se prescreve na alínea a) do artigo 7.º da LSM, o pressuposto base do internamento ao abrigo desse diploma é a anomalia psíquica, definindo-se o internamento compulsivo nesse quadro como «internamento por decisão judicial do portador de anomalia psíquica grave».

Dimensão clínica que conforma o decretamento do internamento compulsivo (que «só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado») e a sua cessação (devendo o internamento findar «logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa», nos termos do artigo 8.º, n.º 1, da LSM). Sem embargo, enquanto medida restritiva da liberdade, o internamento compulsivo tem de compreender um juízo de proporcionalidade conformado pela proibição do excesso, à luz do artigo 18.º da Constituição(17).

Lei de Saúde Mental de 1998 que veio introduzir um regime sobre internamento compulsivo conformado pelo texto constitucional, em substituição do consagrado no quadro da Constituição de 1933 pela Base XXIV da Lei n.º 2118, de 3 de abril de 1963(18), subsistindo a sua regulação como matéria diferenciada das reações criminais.

Na LSM de 1963 o pedido de admissão para internamento em regime fechado era «dirigido ao centro de saúde mental do domicílio do internando ou, na sua falta, ao da residência, exceto quando razões ponderosas, devidamente comprovadas, justifiquem a escolha doutro centro». Diploma que prescrevia no n.º 2 da Base XXIV que «quando o pedido respeitar a estabelecimento oficial, o centro autorizará o internamento se o entender justificado, mas deverá submeter a sua decisão a confirmação do tribunal de comarca; quando o pedido respeitar a estabelecimento particular, o centro dará o seu parecer e, se este for favorável, remeterá o processo ao tribunal da comarca para concessão da necessária autorização».

Existindo dúvidas sobre a conformidade constitucional da LSM 1963 em matéria de internamentos compulsivos, a constitucionalização dos internamentos autónomos da prática de ilícitos compreendeu um primeiro passo na revisão de 1997 da Constituição que passou a admitir de forma expressa «a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar» relativo ao «internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente» (artigo 27.º, n.º 3, alínea h), da Constituição).

Reserva de juiz na aplicação de decisões de internamento de indivíduos portadores de anomalia psíquica independente da prática de qualquer facto ilícito típico. Consequentemente, o internamento ao abrigo da LSM apresenta-se estrutural e teleologicamente distinto das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis que, tal como as penas, têm como pressuposto necessário «sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança» (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição).

Nessa medida, o artigo 30.º da Constituição sobre Limites das penas e das medidas de segurança é sistemática e teleologicamente independentemente do regime sobre internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, o qual foi objeto de reenvio dinâmico para a legislação ordinária, pela norma da alínea h), do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.

Separação de águas sublinhada no Acórdão n.º 674/98 do Tribunal Constitucional:

«Note-se, antes de mais, que no caso sub iudice não está em causa a aplicação de uma verdadeira medida de segurança.

«Enquanto a medida de segurança se liga à prática, pelo agente, de um facto ilícito típico e tem primacialmente uma função de defesa social ligada à prevenção especial, seja sob a forma de pura segurança, seja sob a forma de ressocialização (Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, 1993, §§ 653 e 667 e segs.), o que no presente processo sempre esteve em causa foi uma providência, de caráter estritamente terapêutico, de defesa do requerido. Uma tal teleologia descaracterizava a intervenção em causa como medida de segurança, podendo dizer-se que a aproximava, antes, de um processo como o de internamento (transitório) previsto no n.º 4 do artigo 951.º do Código de Processo Civil, ou, mesmo, em certos aspetos, de suprimento do consentimento do requerido, regulado no artigo 1426.º do mesmo diploma.

«Ora, poderia discutir-se se a privação de liberdade em consequência de internamento compulsivo de doente mental era permitida em face do texto constitucional anterior à revisão constitucional de 1997, havendo esta discussão de passar pela determinação do âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição (segundo o qual “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”) e pelo reconhecimento ou negação da taxatividade das exceções a esse princípio, indicadas no n.º 3 do mesmo artigo 27.º E consoante a resposta, assim haveria que concluir pela conformidade ou desconformidade constitucional das normas em apreço, que permitem o internamento hospitalar compulsivo do requerido para sujeição a tratamento.»

Nesse aresto, que constituiu a primeira pronúncia sobre a conformidade constitucional do internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental de 1963, o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se suportar já no texto constitucional revisto em 1997 para concluir:

«Esta exceção quadra perfeitamente ao internamento hospitalar compulsivo do requerido, para sujeição a tratamento, bastando para se poder concluir que as normas conjugadas e constantes das Bases XX, XXIII, n.os 2 e 3, alíneas a) e d) e XXX da Lei n.º 2118, de 3 de abril de 1963 (Lei da Saúde Mental), não podem ser consideradas inconstitucionais (isto deixando, portanto, em aberto a questão – que não parece resolvida pela nova alínea h) do n.º 3 do artigo 27.º, e, sobretudo, não interessa no caso vertente – de saber se normas que prevejam o internamento compulsivo por motivos diversos da anomalia psíquica são ou não inconstitucionais).»

Quadro constitucional conformador da LSM de 1998 que, atenta a dimensão restritiva da liberdade e o artigo 18.º da Constituição, sublinha o caráter subsidiário e a necessidade da medida de internamento compulsivo, e, como sublinhou José Carlos Vieira de Andrade, «ao defini-la como a ultima ratio, uma intervenção para tratamento que só em último caso pode ser utilizada, ao mesmo tempo que assegura a sua adequação e proporcionalidade, respetivamente, em função do grau de perigo e em função da importância do valor ameaçado»(19).

LSM que compreende um procedimento decisório complexo em que o decretamento da medida exige um consenso médico e judicial sobre a sua necessidade e adequação. Não pode haver internamento sem decisão ou, pelo menos confirmação (no caso de urgência), judicial, contudo, o internamento judicial tem de ser precedido do que se pode configurar como «uma “pré-decisão” médica» por força do artigo 18.º da LSM, dessa norma resulta que «não pode haver internamento compulsivo sem que dois psiquiatras dos serviços oficiais de assistência o considerem adequado»(20).

Em termos jurídico-constitucionais apresentava-se admissível que o controlo judicial dos internamentos compulsivos necessariamente derivados de decisão médica fosse estabelecimento como ato prévio ou posterior ao ato de internamento, tendo o legislador de 1998 optado pela primeira das alternativas(21).

A LSM de 1998 estabelece regras sobre direito subsidiário em que, nomeadamente, se deu prevalência à dimensão restritiva da liberdade das medidas carecidas de decisão judicial. Sem embargo, a subsidiariedade do processo penal não altera a autonomia do procedimento e, fundamentalmente, do direito substantivo relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da LSM. Isto é, como lembra Figueiredo Dias, o internamento regulado na LSM é «uma medida administrativa integrada por um princípio de judicialidade»(22).

Autonomia relativamente ao direito criminal substantivo e adjetivo conformada pela dimensão clínica do internamento compulsivo ao abrigo da LSM, a qual conforma as devidas adaptações da aplicação subsidiária do CPP. Aplicação subsidiária justificada, apesar da diferença dos fins prosseguidos, pela dimensão comum de tutela de direitos, liberdades e garantias dos visados, sendo certo que a LSM é autónoma da política criminal e visa fins terapêuticos – tal como a aplicação subsidiária de regras do processo penal ao procedimento disciplinar preserva a autonomia dos fins prosseguidos e da natureza dos procedimentos(23).

Existe uma diferença estruturante e de raiz entre a medida de segurança de internamento, que constitui uma reação criminal de natureza judicial, e o internamento compulsivo da LSM, que pode ser qualificado como uma medida assistencial de natureza administrativa(24), ainda que dependente de autorização judicial.

Dimensão clínica prevalente na LSM com expressão nas regras de competência territorial, em que o critério determinante é a residência do internado sendo competente, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, da LSM, «o tribunal judicial de competência genérica da área de residência do internado». Prevalência da dimensão clínica que conforma a própria alteração de competência judicial, conformada pelo designado processo clínico(25).

Determinada a autorização judicial do internamento, enquanto medida da reserva de juiz por força da restrição da liberdade do doente envolvida, os procedimentos supervenientes à decisão judicial de internamento são conformados não só pela prevalência da dimensão clínica como ainda da decisão médica sobre a cessação do internamento quando os clínicos considerem que deve haver lugar a substituição do internamento pelo tratamento em regime de ambulatório ou alta do internado (artigos 33.º e 34.º da LSM). Em particular, como destacam António João Latas/Fernando Vieira, a decisão de substituição do internamento compulsivo pelo tratamento compulsivo em regime ambulatório «é exclusivamente médica»(26).

Especificidade processual da LSM derivada da diferença substantiva entre os fins do internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica e as finalidades da medida de segurança de internamento (supra § II.2.1). Relativamente ao internamento compulsivo regulado na LSM, a finalidade é terapêutica enquanto «forma de garantir a submissão a tratamento do internado», como se refere no artigo 8.º, n.º 1, da LSM, devendo, consequentemente, findar «logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa». Relativamente à perigosidade enquanto requisito do internamento compulsivo, como sublinha Pedro Soares Albergaria, constitui «mera condição de legitimidade da intervenção estatal»(27).

§ II.2.3 Retornando às medidas de segurança privativas da liberdade de inimputáveis a sua dimensão penal é preservada ao nível do direito processual, devendo, em sintonia, com a tutela constitucional adjetiva dessas medidas, as quais devem ser aplicadas no quadro do processo penal comum.

Modelo constitucional que conformou o fim do incidente de anomalia psíquica no Código de Processo Penal de 1987 (CPP), à luz de uma ideia matricial no sentido de que a questão da inimputabilidade «tem de ser posta e decidida no próprio processo do facto»(28).

Sistema em que compete ao Ministério Público formular, em primeira linha, um juízo sobre a culpa concreta do arguido e, designadamente, sobre a sua imputabilidade, na fase de inquérito (em face, nomeadamente, da prova pericial sobre a anomalia psíquica).

Caso existam indícios suficientes de crimes públicos e/ou semipúblicos ou de quem foram os seus agentes, na fase de inquérito compete ao Ministério Público formular um juízo sobre a culpa concreta do arguido e, designadamente sobre a sua imputabilidade(29). Pois se o Ministério Público concluir que em face dos indícios obtidos o agente atuou numa situação de inimputabilidade por força de anomalia psíquica deve averiguar se no caso existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma medida de segurança, acusando ou arquivando consoante a conclusão seja afirmativa ou negativa(30).

Se o Ministério Público entende que existem indícios suficientes que fundamentam a aplicação de uma medida de segurança ao arguido é deduzida acusação sob a forma de processo comum, onde, nomeadamente, ao fixar o objeto processual, se tenha presente a exigência de nexo causal entre a anomalia psíquica e a gravidade do facto e a perigosidade da prática de factos da mesma espécie, tendo presentes os pressupostos estabelecidos pelo artigo 91.º, n.º 1, do CP(31).

Em sede de julgamento o tribunal vai apreciar, de acordo com as regras processuais penais e a estrutura acusatória do processo, a imputabilidade do arguido na prática dos factos objeto do processo e, caso conclua pela prova do facto ilícito típico e da inimputabilidade do arguido no momento da sua prática, deve julgar sobre a verificação dos pressupostos penais para aplicação de medida de segurança privativa da liberdade (supra § II.2.1).

Refira-se, por fim, que a possibilidade de o tribunal de julgamento do crime concluindo pela inaplicabilidade de medida de segurança decidir o internamento compulsivo da pessoa visada, ao abrigo do artigo 29.º, n.º 1, da LSM, não descaracteriza esta decisão como não penal. Enxertado no processo penal esse procedimento decisório regulado pela LSM, o mesmo tem de se conformar com a autonomia médica no juízo realizado ao abrigo do artigo 18.º da LSM e na avaliação da subsequente execução do tratamento e cessação do internamento nos termos dos artigos 33.º e 34.º da LSM, nomeadamente, na substituição do internamento por regime de ambulatório e na decisão sobre a alta do paciente (supra § II.2.2). Possibilidade de enxerto no processo penal de um internamento compulsivo ao abrigo da LSM conformada, nomeadamente, pela conexão subjetiva e princípio da economia processual, fatores que não descaracterizam a natureza administrativa do internamento (tal como o enxerto da ação civil ao abrigo do princípio da adesão não coloca em causa a respetiva natureza civil)(32).

§ II.3 As responsabilidades administrativas pela execução de medidas de segurança privativas da liberdade

§ II.3.1 As medidas de segurança privativas da liberdade integram a justiça penal.

Por regra, a problemática incidente em termos de repartição de competências estaduais ao nível da execução de penas e medidas privativas de liberdade tem como epicentro a separação entre justiça e executivo.

Nesse domínio este Conselho Consultivo emitiu o parecer n.º 104/90, de 21 de fevereiro de 1991(33), no sentido de a decisão sobre a concessão da licença de saída do estabelecimento prevista no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto, não se integrar no âmbito constitucional da reserva da função jurisdicional definido no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição e de não ser inconstitucional, por violação do princípio da reserva da função jurisdicional, a norma do artigo 49.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 265/79 que atribuía à Direção-Geral dos Serviços Prisionais a competência para conceder a licença prevista no artigo 58.º daquele diploma.

Parecer n.º 104/1990 proferido há cerca de um quarto de século onde se destacou que o «juiz de execução das penas, instância judicial de controlo de execução das reações criminais, constitui, no momento atual de evolução da instituição, mais do que um magistrado que acompanhe a fase de execução, designadamente das medidas privativas de liberdade, um sistema judicial de defesa do estatuto do recluso, permitindo-lhe, quando se sinta prejudicado, recorrer a uma instância protetora dos seus direitos, e, nesta mesma perspetiva de proteção, decidir das modificações ou alterações relevantes e essenciais no estatuto jurídico do recluso durante a execução da medida»(34).

Sem embargo, no parecer n.º 104/1990 também se assinalou a margem de decisão legislativa no domínio da execução das reações criminais em que a lei pode, dentro dos limites constitucionais, judicializar em maior ou menor grau certas fases ou momentos de execução. Destacando-se na primeira conclusão desse parecer que «a execução das medidas privativas de liberdade que, nos termos do artigo 42.º do Código Penal é objeto do diploma próprio – o Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto -, está a cargo dos serviços da Administração especialmente constituídos para desempenhar esta função».

§ II.3.2 O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro(35), em sintonia com as coordenadas acima destacadas sobre a integração das medidas de segurança na justiça, atribui a responsabilidade administrativa pela respetiva execução à DGRSP organismo integrado no Ministério da Justiça(36).

Sobre a repartição de competências ao nível interno do poder executivo, ressalta como primeira coordenada que a Constituição portuguesa «não individualiza o ministro da justiça que se apresenta, assim, apenas como um ministro do governo com uma determinada reserva de competências»(37).

Passando ao direito ordinário, o Ministério da Justiça (MJ), é configurado pela respetiva Lei Orgânica (LOMJ) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro(38), como o departamento governamental cuja missão compreende «a conceção, condução, execução e avaliação da política de justiça definida pela Assembleia da República e pelo Governo» (artigo 1.º, n.º 1, da LOMJ).

Quadro em que se atribui a esse ministério a responsabilidade administrativa pela execução das medidas de segurança privativas da liberdade, incluindo a respetiva componente financeira. Ministério da Justiça cujas atribuições envolvem o assegurar dos mecanismos adequados de execução das medidas penais privativas e não privativas de liberdade, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º da LOMJ. Competindo atualmente a direção desses serviços à Ministra da Justiça do XXI Governo Constitucional (artigo 17.º, n.º 2, da Lei Orgânica do XXI Governo Constitucional aprovada pelo Decreto-Lei n.º 251-A/2015 de 17 de dezembro), direção que constitui matéria estranha à competência do Ministro da Saúde (atento o disposto no artigo 23.º do mesmo diploma)(39).

Na organização interna do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) – cf. artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP (LODGRSP) aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro. Existindo no âmbito da DGRSP uma Direção de Serviços de Execução de Medidas Privativas da Liberdade (DSEMPL), prevista no artigo 1.º, n.º 1, alínea a), Portaria n.º 118/2013, de 25 de março.

Arquitetura organizacional coerente com a incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), CEPMPL, enquanto entidade com a responsabilidade administrativa de garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

§ II.3.3 Chegados ao presente passo, temos como assente um pressuposto de base incontornável: A execução da medida de segurança privativa da liberdade integra-se, no plano administrativo, nas atribuições relativas à justiça penal. Essa constatação, à partida, deveria implicar que os respetivos encargos, salvo norma especial em sentido contrário, deveriam ser assegurados pelas entidades responsáveis pela dimensão administrativa e financeira da execução das penas e medidas privativas da liberdade, corolário lógico que se apresente em sintonia com o que se encontra prescrito no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL.

Contraposta a essa base é indiciada uma ideia de conexão entre os internamentos clínicos do paciente que sofre de anomalia psíquica e o «internamento de inimputáveis nos termos do Código Penal», ao abrigo da ideia de que «através do internamento sujeita-se o tratamento médico no sentido de restabelecer o reequilíbrio psíquico do mesmo»(40).

A ênfase na componente médica da inimputabilidade, para associar o cumprimento de medida de segurança imposta por um tribunal na sequência de um julgamento penal aos internamentos por razões de saúde mental, não altera a responsabilidade legal dos departamentos do MJ pela respetiva execução e a autonomia entre os dois procedimentos e regimes.

As medidas de segurança privativas da liberdade têm como pressuposto, a prática do crime, a inimputabilidade no momento do crime e a perigosidade criminal do agente (conexa com a gravidade do crime cometido e a anomalia psíquica) sendo inconfundíveis com medidas administrativas com fins médico-terapêuticos (supra § II.2.2).

Acrescente-se que o próprio conceito de inimputabilidade é estranho à intervenção estadual para finalidades médico-assistenciais (supra § II.2.2). A inimputabilidade por anomalia psíquica constitui um conceito jurídico-penal (supra § II.2.1), e a especificidade de uma intervenção de peritos médicos no julgamento reporta-se, apenas, à existência de uma prova legal no sentido de se exigir a perícia quanto a um dos elementos necessários para o preenchimento do conceito, a anomalia psíquica. Tal ponto não determina a transferência do poder judicial para os médicos, significando, apenas, que a lei não considera as perceções humanas uma fonte fiável para a prova desse tipo de factos, dada a respetiva especificidade, exigindo-se prova pericial como base do juízo do tribunal, isto é, a prova científica constitui um meio taxativo para serem produzidas inferências judiciais sobre anomalia psíquica(41).

Anomalia psíquica que constitui o substrato biopsicológico da inimputabilidade a qual depende, ainda, de um elemento normativo, a incapacidade de o agente avaliar, no momento da prática do facto, a ilicitude deste ou de se orientar de acordo com essa avaliação (supra § II.2.1), o qual também tem de ser integrado no juízo judicial.

No resumo das posições divergentes na origem da presente consulta refere-se, a dado passo, «que na perspetiva do Ministério da Justiça o fundamento do internamento é, antes de mais, a necessidade de assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão, sendo a aplicação da medida de segurança (restrição da Liberdade) meramente instrumental daquele objetivo maior». Essa perspetiva colide com o enquadramento penal das medidas de segurança e os pressupostos jurídicos da sua aplicação, em particular a prática de facto ilícito típico grave e a perigosidade do agente. Privação da liberdade que é conformada pela gravidade do ilícito criminal (cujos tipos objetivo e subjetivo têm de se encontrar preenchidos) e legitimada pela referida dimensão penal(42).

A execução das medidas de segurança privativas da liberdade que, nos termos do disposto pelo artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL, visa «a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade», finalidades inconfundíveis com um estrito programa de prestação e cuidados de saúde à pessoa provada da liberdade.

Em síntese, o fundamento do internamento relativo a execução de medidas de segurança privativas da liberdade previstas no Código Penal não é, ao contrário do que sucede com os internamentos compulsivos da LSM, a necessidade de assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão(43).

§ II.3.4 A problemática da eventual responsabilidade do Ministério da Saúde pelos encargos relativos ao internamento de inimputáveis foi equacionada na consulta tendo por referência o Serviço Nacional de Saúde (SNS). No resumo da perspetiva do Ministério da Justiça é referido, nomeadamente, que essa entidade «entende que todas as despesas decorrentes do internamento compulsivo de inimputáveis em unidades de psiquiatria do SNS, constituem responsabilidade do Ministério da Saúde, na medida em que aqueles são utentes do SNS».

Invocada a qualidade de utente do SNS do recluso importará atender à base constitucional do SNS e respetivas atribuições na ordem jurídica portuguesa.

De acordo com as coordenadas constitucionais de 1976, o «direito à proteção da saúde» é «realizado», nos termos artigo 64.º, n.º 2, da Constituição «através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».

O financiamento da prestação de cuidados de saúde realizados pelas unidades prestadoras de saúde do SNS, além do direto comando constitucional, encontra-se previsto na Lei de Bases da Saúde aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto(44). Na redação originária do n.º 1 da Base XXXIII prescrevia-se que o SNS é financiado pelo Orçamento do Estado. Preceito revisto pela Lei n.º 27/2002 que passou a prescrever que «o Serviço Nacional de Saúde é financiado pelo Orçamento do Estado, através do pagamento dos atos e atividades efetivamente realizados segundo uma tabela de preços que consagra uma classificação dos mesmos atos, técnicas e serviços de saúde»(45).

Inalterada desde 1990 subsiste a alínea b) do n.º 2 da Base XXXIII, a qual dispõe que os serviços e estabelecimentos do SNS podem cobrar como receitas, a inscrever nos seus orçamentos próprios o pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente.

Desta forma, a pessoa coletiva responsável pelo financiamento relativo à execução das penas e medidas de segurança e do SNS é a mesma, o Estado. Por outro lado, nada obsta a que o SNS cobre o pagamento de prestação de serviços abrangidos pela responsabilidade de outras entidades.

O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS, constitui uma coordenada constitucional implicada pela universalidade do SNS, isto é, um serviço «dirigido à generalidade dos cidadãos»(46).

Embora exista um reenvio dinâmico para a lei ordinária na concretização do direito constitucional, o legislador está vinculado a comandos constitucionais, como se destaca no Acórdão n.º 731/95 do Tribunal Constitucional: «A universalidade confere a todos o direito de recorrer ao SNS, não impedindo naturalmente a existência e o recurso aos serviços particulares de saúde. A generalidade traduz a necessidade de integração de todos os serviços e prestações de saúde»(47).

Pelo que, independentemente da específica regulação dos direitos e deveres dos reclusos no CEPMPL, à partida, a privação da liberdade em virtude da execução de reação criminal não poderia privar o cidadão da categoria de beneficiário do SNS, que abrange, nomeadamente, «todos os cidadãos portugueses», nos termos do n.º 1 da Base XXV da Lei de Bases da Saúde(48), na concretização do comando constitucional sobre a universalidade do SNS.

§ II.3.5.1 Relativamente aos cidadãos sujeitos a medida penal privativa da liberdade constitui, em primeira linha, incumbência dos serviços prisionais assegurar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, o efetivo exercício do direito de acesso ao SNS dos reclusos em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas do artigo 7.º, n.º 1, alínea i), e do artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL.

Importa, ainda, ter presente que, como se destaca no Manual do projeto Dos Princípios à Prática da Reforma Penal Internacional no quadro das Nações Unidas «a saúde física e mental dos reclusos é o aspeto mais vital assim como o mais vulnerável da vida num estabelecimento prisional»(49), integrando uma responsabilidade primacial dos serviços prisionais, em particular no quadro multipolar dos vários interfaces envolvidos na intervenção em saúde mental de reclusos(50).

Direitos que decorrem de imperativos constitucionais em que, para além do já referido princípio da universalidade do SNS, ressalta a prescrição do artigo 30.º, n.º 5, da Constituição no sentido de que os condenados a quem sejam aplicadas medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.

Em coerência, relativamente à proteção da saúde do recluso durante o cumprimento da medida de segurança privativa em estabelecimento prisional é prescrito que ao recluso deve ser garantido o acesso a cuidados de saúde em condições de qualidade e de continuidade idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos (artigo 32.º, n.º 1, do CEPMPL), que, para todos os efeitos, é utente do SNS (artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL).

Coordenada geral que, além de ser objeto de desenvolvimento no Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais (RGEP), carece de regulação em diploma próprio, conforme é expressamente prescrito no n.º 3 do artigo 32.º do CEPMPL.

Aprovado o RGEP pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 51/2011, de 11 de abril, decorridos mais de sete anos sobre a publicação do CEPMPL ainda não foi publicado o diploma próprio sobre a forma como deve ser assegurado o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos onde deve ser tratada a resolução das questões carecidas de regulação ao nível da interação do sistema prisional com o SNS.

De qualquer modo, enquanto não for aprovado o referido diploma próprio subsiste a responsabilidade primária dos serviços prisionais, diretamente estabelecida na legislação sobre execução de medidas de segurança privativas da liberdade. Podendo, enquanto não for publicado o diploma próprio, «ainda existir estabelecimentos prisionais ou unidades de natureza hospitalar ou destinados à prestação de cuidados especiais de saúde, nomeadamente saúde mental, bem como destinados a inimputáveis ou a imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, quando estes não devam ser internados em unidade de saúde mental não prisional», nos termos artigo 9.º, n.º 4, do CEPMPL.

Desta forma, o CEPMPL não abre espaço para diluição das responsabilidades dos serviços prisionais relativamente aos reclusos, inclusive quando sujeitos a internamento hospitalar não prisional que depende de autorização de responsáveis inseridos na orgânica da DGRSP (ao abrigo do artigo 34.º, n.º 3, do CEPMPL(51) e cuja vigilância tem de ser garantida pelos serviços prisionais (nos termos do artigo 34.º, n.º 4, do CEPMPL).

Sendo o recluso (a cumprir pena ou medida de segurança em estabelecimento prisional) internado em unidade de saúde do SNS para receber cuidados de saúde, na parte em que o internamento se reporta à referida necessidade clínica é abrangido pelas atribuições próprias do SNS, devendo o recluso ser tratado como utente desse sistema (estando os profissionais médicos ao serviço do SNS habilitados para avaliar a situação médica e determinar a respetiva alta, constituindo obrigação dos serviços prisionais assegurarem a prática dos atos inerentes a essa alta). De qualquer modo, a matéria objeto do parecer reporta-se ao financiamento da execução de medidas privativas da liberdade, nomeadamente em unidades integradas no SNS, e não à interação dos serviços prisionais com os prestadores (nomeadamente hospitais públicos) do SNS relativamente à prestação de cuidados de saúde pontuais aos reclusos enquanto utentes do SNS(52).

Fundamental quanto ao tema do parecer é o princípio de que os encargos decorrentes da específica situação de reclusão, nomeadamente ao nível das medidas de segurança privativas da liberdade, subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais(53). Prestação de cuidados de saúde ao recluso que se realiza nos estabelecimentos prisionais e, quando necessário, em unidades de saúde no exterior (artigo 58.º do RGEP).

A responsabilidade do SNS relativamente à prestação de cuidados de saúde aos reclusos reporta-se aos estritos limites da respetiva condição de utentes do SNS, salvo norma especial ou protocolo entre departamentos do Estado competentes em sentido contrário.

Dessa forma, a existência de dimensões clínicas e outras relativas à proteção da saúde na execução de penas e medidas de segurança privativas da liberdade não colide com a responsabilidade primária da administração prisional. Dimensões clínicas sobre a situação dos reclusos cuja garantia integra as competências dos serviços prisionais, conforme decorre do artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL e, em particular no que concerne a inimputáveis ou imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, por força dos artigos 253.º, n.º 1(54), e 255.º, n.º 1(55), do RGEP.

Por seu turno, a garantia do acesso pelo recluso, enquanto utente do SNS, a cuidados de saúde em condições de qualidade e continuidade idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos compreende o acesso às prestações de saúde asseguradas pelo SNS à generalidade dos utentes(56).

O âmbito de responsabilidade do SNS, em face das normas gerais vigentes e na falta de normas especiais em sentido contrário, não abrange as exigências específicas inerentes à reclusão determinada por uma sentença judicial proferida em processo penal, que devem ser asseguradas pelos serviços prisionais.

Acesso aos cuidados de saúde dos cidadãos sujeitos à privação da liberdade em virtude de sentença criminal em que, sublinhe-se uma vez mais, existe uma responsabilidade primária do sistema administrativo de justiça, e em particular da DGRSP, que complementa a do SNS. A intervenção do SNS só opera relativamente aos beneficiários que são apresentados nos respetivos estabelecimentos para o efeito de receberem cuidados de saúde como quaisquer outros utentes do SNS(57).

Asseguradas pelos serviços prisionais as condições específicas derivadas do estatuto de recluso sendo o mesmo apresentado a estabelecimento do SNS para receber cuidados de saúde em regime de ambulatório ou de internamento hospitalar os custos inerentes, na parte em que se apresentem similares aos suportados com cidadãos em liberdade, devem ser assegurada pelo SNS. Responsabilidade do SNS que não substitui a primeira linha dos encargos dos serviços prisionais que compreendem, nomeadamente, o dever de assegurar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, o efetivo exercício do direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

Enquanto não for publicado diploma próprio regulador do acesso e prestação de cuidados de saúde a recluso em cumprimento de medida de segurança em estabelecimento prisional (previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL) podem existir estabelecimentos prisionais ou unidades de natureza hospitalar ou destinados à prestação de cuidados especiais de saúde, nomeadamente saúde mental, bem como destinados a inimputáveis ou a imputáveis internados, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis, conforme prescrito pelo artigo 9.º, n.º 4, do CEPMPL.

A elaboração do plano terapêutico e de reabilitação do internado em cumprimento de medida de segurança privativa da liberdade, embora deva compreender a participação de especialistas em saúde mental, é da responsabilidade dos serviços prisionais e tem de ser homologado pelo Tribunal de Execução de Penas – artigos 128.º e 172.º do CEPMPL e 254.º do RGEP. Pelo que, a escolha e alteração do regime de execução não constitui matéria da reserva médica, integrando-se numa apreciação global conformada pelas finalidades normativas da execução das medidas de execução que compreende, nomeadamente, campos de intervenção jurisdicional – cf. disposições conjugadas dos artigos 12.º a 16.ºe 127.º do CEPMPL e ainda dos artigos 252.º e 253.º do RGEP(58).

Em face do exposto, não pode ser imposta ao SNS a transferência para esse sistema público da responsabilidade pelos encargos da execução de medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas ao abrigo do Código Penal, por falta de suporte nas normas vigentes sobre a responsabilidade administrativa pela execução das medidas de segurança privativas da liberdade.

§ II.3.5.2 Existe um campo específico do cumprimento de medidas de segurança de internamento que merece considerações adicionais, o regime de execução de medidas de segurança privativas da liberdade em unidade de saúde mental não prisional prevista no artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL.

Internamento em unidade de saúde mental não prisional que constitui uma forma específica de execução de medidas de segurança carecida de regulação em diploma próprio(59) estabelecida como regime de execução preferencial(60).

O CEPMPL, decorrida a vacatio legis de seis meses, encontra-se em vigor há mais de 6 anos e 10 meses sem que, tenha sido publicado diploma próprio relativo à execução de internamento de inimputáveis em unidade de saúde mental não prisional.

Essa omissão legislativa não obsta à vigência da regra preferencial sobre internamento em unidade de saúde mental não prisional que tem de subsistir enquadrada num sistema normativo em que o Ministério da Justiça é o departamento governamental responsável pela execução de todas as medidas privativas da liberdade.

Em coerência, prescreve-se que na organização da DGRSP a DSEMPL (supra § II.3.2) constitui a unidade orgânica responsável pela gestão da população prisional e pelo acompanhamento dos regimes de execução das medidas privativas da liberdade previstos na lei e, em particular, pela proposta de internamento e pela gestão e acompanhamento de reclusos inimputáveis em unidades hospitalares não prisionais (artigo 2.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), da Portaria n.º 118/2013).

As finalidades da execução da medida privativa da liberdade aplicada a inimputável são a reabilitação do internado e a sua reinserção no meio familiar e social, prevenindo a prática de outros factos criminosos e servindo a defesa da sociedade e da vítima em especial (tal como a execução da pena de imputável internado, por decisão judicial, em estabelecimento destinado a inimputáveis), nos termos do n.º 1 do artigo 126.º do CEPMLP. Finalidades que se apresentam independentes do regime de execução de medidas de segurança privativas da liberdade (em unidade de saúde mental não prisional ou estabelecimento prisional).

Consequentemente, ainda que o regime de execução de medida de segurança privativa da liberdade decorra em unidade de saúde mental não prisional (cf. artigo 254.º, n.º 5, do RGEP) o plano terapêutico e de reabilitação é uno, subsistindo atribuída à DGRSP a responsabilidade administrativa pela sua elaboração e envio ao tribunal, tal como as responsabilidades relativas aos meios especiais de segurança (artigos 131.º do CEPMPL e 255.º do RGEP).

Enquanto não entrar em vigor o diploma próprio sobre a execução de medida de segurança em unidade de saúde mental não prisional, o mesmo subsiste submetido ao CEPMPL. Pelo que, os serviços prisionais não têm competência para impor a transferência para o SNS dos encargos relativos à execução da medida privativa da liberdade aplicada a inimputável orientada pela reabilitação do internado e a sua reinserção no meio familiar e social, prevenindo a prática de outros factos criminosos e servindo a defesa da sociedade e da vítima em especial, independentemente do estabelecimento em que essas medidas sejam cumpridas.

III. Conclusões

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1 – A aplicação de medida de segurança de internamento de inimputáveis depende, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, de sentença judicial transitada em julgado (ao abrigo das regras processuais penais) sobre a verificação dos seguintes pressupostos cumulativos:

a) Prática de um concreto ilícito típico criminal;

b) Inimputabilidade do agente no momento da prática do facto;

c) Juízo de probabilidade, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, sobre a existência de fundado receio de que o agente venha a cometer outros factos da mesma espécie.

2 – O internamento de inimputáveis ao abrigo do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal é configurado como uma reação criminal inconfundível com intervenções determinadas por fins terapêuticos de saúde mental que visem primariamente assegurar a prestação de cuidados de saúde ao cidadão.

3 – A natureza criminal das medidas privativas da liberdade determina que a respetiva execução seja regulada pelo Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (CEPMPL) aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro.

4 – O regime relativo ao internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental tem suporte em pressupostos inconfundíveis com a aplicação das medidas de segurança previstas pelo Código Penal não sendo regulado pelo CEPMPL.

5 – As componentes administrativas e financeiras da execução das medidas de segurança de internamento de inimputáveis decretadas judicialmente ao abrigo do Código Penal devem ser asseguradas pelo Ministério da Justiça atento, nomeadamente, o disposto no artigo 2.º, alínea e), da Lei Orgânica do Ministério da Justiça aprovada pelo Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.

6 – Na organização do Ministério da Justiça a execução das medidas privativas da liberdade integra as atribuições próprias da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), nos termos dos artigos 2.º e 3.º, alínea a), da Lei Orgânica da DGRSP aprovada pelo Decreto-Lei n.º 215/2012, de 28 de setembro.

7 – Arquitetura organizacional refletida na incumbência dos serviços prisionais prevista no artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL: Garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de acordo com as respetivas finalidades reportadas à «reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade» (nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do CEPMPL).

8 – O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde cujo objetivo é a efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva, o qual funciona sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde sendo regulado, nomeadamente, pelo Estatuto do SNS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.

9 – O direito constitucional a ser tratado como beneficiário do SNS independentemente de estar sujeito ou não a uma medida penal privativa da liberdade decorre da universalidade do SNS consagrada no artigo 64.º, n.º 2, da Constituição.

10 – Em coerência com a universalidade do SNS, o artigo 7.º, n.º 1, alínea i), do CEPMPL prescreve de forma expressa que a execução das medidas privativas da liberdade garante ao recluso, nomeadamente, o direito de acesso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos e o artigo 32.º, n.º 2, do CEPMPL que o recluso é, para todos os efeitos, utente do SNS.

11 – Integra as atribuições do Ministério da Justiça assegurar o financiamento da generalidade dos custos públicos inerentes ao internamento de inimputáveis condenados ao abrigo do Código Penal em medida privativa da liberdade.

12 – Incumbe, em primeira linha, à DGRSP providenciar, em articulação com os competentes serviços públicos das áreas da saúde, pelo efetivo exercício do direito de acesso do recluso ao SNS em condições idênticas às que são asseguradas a todos os cidadãos, nos termos das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 7.º do CEPMPL.

13 – A circunstância de a medida de segurança privativa de liberdade ser cumprida em unidade de saúde mental não prisional, ao abrigo do artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL, não altera a respetiva natureza penal nem, salvo norma expressa em sentido contrário, a consequente responsabilidade da DGRSP pela dimensão administrativa da respetiva execução.

14 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras relativas ao cumprimento de medidas privativas da liberdade em unidade de saúde mental deve ser objeto de regulação em diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL.

15 – Enquanto não for publicado o diploma próprio previsto no artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL, os encargos decorrentes da específica situação de reclusão de inimputáveis que cumprem medida de segurança privativa da liberdade em unidade de saúde mental e de imputáveis que cumprem pena nesse tipo de instituições subsistem abrangidos pela responsabilidade dos serviços prisionais enquanto departamento estadual que deve garantir, nos termos da lei, a execução das penas e medidas privativas da liberdade de acordo com as respetivas finalidades.

16 – Sem prejuízo das conclusões anteriores, os encargos relativos à prestação de cuidados de saúde por instituições do SNS a reclusos integram os custos de financiamento do SNS e, salvo acordo de cooperação em sentido contrário das entidades envolvidas, não podem ser reclamados ao Ministério da Justiça na parte em que quanto a utentes do SNS em liberdade devessem ser suportados por esse sistema público de saúde.

17 – A complexidade das questões interorgânicas envolvidas na repartição de responsabilidades pelas tarefas administrativas e financeiras necessárias para assegurar o acesso e a prestação de cuidados de saúde aos reclusos cujo cumprimento de medidas privativas da liberdade decorre em estabelecimento prisional deve ser objeto de regulação por diploma próprio previsto no artigo 32.º, n.º 3, do CEPMPL, o qual, contudo, ainda não foi publicado.

(1) Ofício entrado na Procuradoria-Geral da República em 17-11-2016.

(2) Na sequência de redistribuição do processo por força de despacho proferido em 2-12-2016.

(3) Fórmula empregue no artigo 12 do texto subscrito pelas entidades consulentes.

(4) Artigo 11 do texto que fundamentou a consulta.

(5) Cf. artigos 14, 16, 18, 19, 20, 21, 28 e 32.

(6) Direito Criminal, volume I, Coimbra, Almedina, 1971 (reimpressão), p. 331.

(7) No n.º 3 do artigo 20.º acrescenta-se: «A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior». Regime sobre imputabilidade diminuída resultado de opções particulares de política criminal, nomeadamente, sobre a rejeição do modelo dualista, ainda que «por causa disso tenha que considerar inimputável quem, afinal, é imputável» (Maria João Antunes, O internamento de inimputáveis em estabelecimentos destinados a inimputáveis, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 75).

(8) Acolhida no n.º 4 do artigo 20.º do CP: «A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.»

(9) Jorge Figueiredo Dias, Direito penal português – As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, p. 469; Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 125; Maria João Antunes, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 469.

(10) E objeto de referência especificada no artigo 1.º, n.º 2, do CP: «A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento».

(11) Cf. Figueiredo Dias, op. cit., 1993, pp. 424-429. Refira-se que existe controvérsia na doutrina penalista portuguesa sobre a função das medidas de segurança na tutela de bens jurídicos e expetativas comunitárias tema sobre o qual, contudo, não se apresenta pertinente desenvolvimento, em face da economia do presente parecer.

(12) Como reconhece Maria João Antunes, «constituindo o facto praticado pelo agente inimputável em virtude de anomalia psíquica um dos “pontos de referência dos critérios de aferição da proporcionalidade”, vocacionada para “papel e função análogos aos que são desempenhados no direito das penas pelo princípio da culpa”, abriu-se também por aqui a porta para uma aproximação da medida de segurança à pena e ao crime, bem como para a autonomização do facto enquanto facto pressuposto do internamento de agente inimputável em virtude de anomalia psíquica» (op. cit., 2002, p. 174)

(13) Prescreve o artigo 91.º, n.º 2, do CP: «Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social».

Por seu turno o artigo 92.º, n.º 2, do CP dispõe que o «internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável». Existindo uma ressalva para crimes mais graves no n.º 3 do mesmo preceito legal: «Se o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime punível com pena superior a oito anos e o perigo de novos factos da mesma espécie for de tal modo grave que desaconselhe a libertação, o internamento pode ser prorrogado por períodos sucessivos de dois anos até se verificar a situação prevista no n.º 1. [o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem].»

(14) Nos termos do artigo 92.º, n.º 1 do CP, esse preceito ressalva que tal ponderação é realizada sem prejuízo do disposto no artigo 91.º, n.º 2, do CP (cf. nota precedente).

(15) Referida, apenas, como elemento auxiliar de enquadramento da consulta e do argumentário das duas perspetivas sobre a resposta à específica questão suscitada (supra § II.1).

(16) Revista pela Lei n.º 101/99, de 26-8.

(17) Prescrevendo-se em sintonia no artigo 8.º, n.º 2, da LSM que o «internamento compulsivo só pode ser determinado se for proporcionado ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa».

(18) Diploma de 1963 também conhecido como Lei da Saúde Mental.

(19) «O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica», AAVV A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 82.

(20) José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 85.

(21) Sobre os termos da discussão, cf. António João Latas/Fernando Vieira, Notas e comentários à Lei de Saúde Mental, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 56.

(22) «Palavras finais à conferência do Procurador-Geral da República», AAVV A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 61.

(23) Sobre este ponto, veja-se o recente parecer n.º 19/2016, de 25-1-2017 (o qual, à data do presente parecer não se encontra acessível na base de dados aberta ao público sita em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf, subsistindo apenas na «área reservada»), em que nomeadamente, se destacou que «o reforço garantista de regras sobre direito disciplinar público é empreendido por aproximações, necessariamente moderadas, ao regime mais exigente e rigoroso do processo penal».

(24) Expressão empregue no ponto 7 da exposição de motivos da proposta de lei n.º 121/VII.

(25) Por esse motivo, relativamente aos atos supervenientes, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-4-2014 (processo n.º 1196/13.7TBPRT-A.P1) se conclua «que o processo judicial, à semelhança do que ocorre com o processo clínico, acompanhasse o cidadão, por isso sem margem para dúvida estatuiu que é competente o tribunal judicial da área de residência do internado».

(26) Op. cit., p. 184.

(27) A Lei de Saúde Mental Anotada, Coimbra, Almedina, 2003, p. 37.

(28) Nas palavras de Figueiredo Dias – «Para uma reforma global do processo penal português», in AAVV, Para uma nova justiça penal, Ciclo de conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1983, p. 216 -, que o assumiu como objetivo da reforma processual.

(29) Assim Figueiredo Dias, op. cit., 1983, p. 219 e, essencialmente, «Sobre a inimputabilidade jurídico-penal em razão de anomalia psíquica: a caminho de um novo paradigma?», Estudios penales y criminologicos, XIII, Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela, 1990, pp. 149-150; Maria João Antunes, op. cit., 1993, p. 108; José Souto Moura, «Inquérito e Instrução» in Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de direito processual penal – O novo Código de Processo Penal (org.), Coimbra, Almedina 1988 (Reimp. de 1991), p. 93; Paulo Dá Mesquita, Direção do inquérito penal e garantia judiciária, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 87-88, sentido, aliás, incontornável em face das disposições dos artigos 1.º, n.º 1, al. a), 2.º e 283.º, n.º 2 e n.º 3, al. b), do CPP.

(30) Isto é, caso o Ministério Público entenda que não existem indícios suficientes que fundamentem a aplicação de uma medida de segurança há lugar à prolação de um despacho de arquivamento, nos termos do art. 277.º, n.º 2, do CPP – devendo ser ponderada a abertura de um procedimento administrativo com vista à eventual propositura de ação no âmbito da Lei de Saúde Mental (que é matéria que escapa ao presente parecer, cf. supra §§ II.1 e II.2.2).

(31) No caso de concluir pela inimputabilidade em virtude de anomalia psíquica, o Ministério Público está confrontado apenas com duas alternativas possíveis: arquivamento ou acusação, não sendo admissíveis soluções de diversão já que pela sua própria natureza as medidas de segurança não permitem uma determinação judicial em função da duração da perigosidade criminal que as justifique (cf. Maria João Antunes, «Alterações ao sistema sancionatório. As medidas de segurança», in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, vol. II, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1998, p. 128; Paulo Dá Mesquita, op. cit., p. 88).

(32) Como, aliás se destacou no parecer n.º 45/2014, de 15-1-2015 (o qual, à data do presente parecer não se encontra acessível na base de dados aberta ao público sita em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf, subsistindo apenas na «área reservada»), no caso de ação civil enxertada a complexidade das questões envolve plurisubjetividade que não se verifica no caso de enxerto superveniente de procedimento decisório ao abrigo da LSM:

«Cenário processual penal em que, pelo menos em abstrato, podem ser interpostas por particulares demandas que visam a responsabilização civil de pessoas coletivas insuscetíveis de responsabilidade criminal e/ou pessoas singulares responsáveis civis de forma solidária com aquelas, por força do disposto princípio da adesão estabelecido no artigo 71.º do Código de Processo Penal: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

«Nesse domínio emerge como sujeito processual autónomo o demandado que não é arguido, impondo-se o respetivo patrocínio, por força do artigo 76.º, n.º 2, do Código de Processo Penal: «Os demandados e os intervenientes devem fazer-se representar por advogado».

(33) Publicado no Diário da República 2.ª série, de 27 de agosto de 1991

(34) Sublinhando-se, ainda, sobre a posição do intérprete nesta sede, o seguinte:

«A definição da medida de flexibilização de execução das penas (e medidas de segurança) privativas de liberdade prevista no artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79, os pressupostos e elementos objetivos e subjetivos, e a fixação em órgão da administração da competência para a respetiva concessão, constituíram opções positivas do legislador; os motivos determinantes da opção tomada e a concretização normativa de tal opção relevam nessa dimensão, e constituem dados assentes em sede interpretativa.

«Na posição em que o intérprete se tem de situar, a análise da solução não poderá ser efetuada com base em pressupostos de razoabilidade do sistema, ou de opção, mas apenas no campo de eventual (des)conformidade ao nível da Constituição.»

(35) Objeto de alterações aprovadas pelas Leis n.º 33/2010, de 2 de setembro, n.º 40/2010, de 3 de setembro, e n.º 21/2013, de 21 de fevereiro.

(36) A redação do CEPMPL refere-se à Direção-Geral dos Serviços Prisionais que foi extinta, tendo sido criada a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) que passou a assumir as referidas atribuições, conforme regime orgânico referido à frente.

(37) Gomes Canotilho, «A questão do autogoverno das magistraturas como questão politicamente incorreta» in AAVV Ab uno ad omnes, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 256.

(38) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 61/2016, de 12 de setembro.

(39) Recorde-se que os secretários de Estado não dispõem de competência própria, exceto no que se refere aos respetivos gabinetes, e exercem, em cada caso, a competência que neles seja delegada pelos ministros respetivos, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, da referida Lei Orgânica.

(40) Artigo 30 do despacho da consulta no resumo de argumentos integrados sobre a aí denominada «perspetiva do Ministério da Justiça».

(41) Cf. Paulo Dá Mesquita, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento – Estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 318, 483, 509, 626.

(42) Como, aliás, foi destacado por Figueiredo Dias nos trabalhos da comissão de revisão do Código Penal de 1982 (cf. Ministério da Justiça, Atas da Comissão de Revisão, Lisboa, Rei dos Livros, 1993, p. 121) que veio a culminar na reforma de 1995.

(43) Pelo que, a tese que propugna que esse constitui o primeiro ou principal fundamento das medidas de segurança afigura-se incompatível com o regime jurídico vigente. Relembre-se, ainda, que, como oportunamente se referiu (supra § I.2.1), o conceito de inimputabilidade é amplo (abrange nomeadamente quem por força do consumo de estupefacientes ou outra causa de perturbação da consciência «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação») e constitui, ainda, condição da aplicação da medida de segurança a perigosidade criminal futura relativa à probabilidade da prática «de outros factos da mesma espécie».

(44) Alterada pelo Decreto-Lei n.º 10/93, de 15 de janeiro, Lei n.º 27/2002, de 11 de agosto; Lei n.º 40/2005, de 17 de fevereiro; Decreto-Lei n.º 222/2007, de 29 de maio, tendo na sequência desse diploma sido extintas sub-regiões de saúde pelas portarias n.º 273/2009 a 276/2009, de 18 de março.

(45) O núcleo da discussão da proposta de lei n.º 127/V e dos projetos de lei n.os 481/V (PS), 484/V (PRD), 485/V (PCP) e 486/V (CDS), dos quais emergiu a atual Lei de Bases da Saúde quanto à Base XXIII incidiu nas únicas taxas a pagar diretamente pelos beneficiários do SNS, as «taxas moderadoras».

(46) Gomes Canotilho/Vital Moreira, op. cit., p. 827.

(47) Prosseguindo-se, depois de análise das normas ordinárias à frente, que «o legislador criou um Serviço Nacional de Saúde, como «um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde» de âmbito nacional, ao qual cabe a responsabilidade da “efetivação, por parte do Estado, da responsabilidade que lhe cabe na proteção da saúde individual e coletiva”, de caráter universal, porque dele pode beneficiar toda a população residente no território nacional, e geral, na medida em que abrange todos os serviços públicos de saúde e presta integralmente todos os cuidados de saúde (cuidados primários e diferenciados) ou garante a sua prestação, estendendo-se, por isso, a todos os domínios da proteção da saúde – dando, assim, satisfação ao preceituado no artigo 64.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, da Constituição.»

(48) É o seguinte o texto completo da Base XXV que subsiste inalterada desde 1990:

«1 – São beneficiários do Serviço Nacional de saúde todos os cidadãos portugueses.

«2 – São igualmente beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos termos das normas comunitárias aplicáveis.

«3 – São ainda beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas residentes em Portugal.»

(49) Reforma Penal Internacional, Dos Princípios à Prática, Lisboa, Procuradoria-Geral da República, 1996, p. 77.

(50) Cf. Nancy Wolff, «Intervenção em saúde mental para pessoas com comportamento antissocial: 10 pontos de interface», A. Castro Fonseca et al. (eds.) Psicologia Forense, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 559-561. Sobre as variantes organizacionais quanto aos serviços de saúde que têm de ser assegurados pelos serviços prisionais, cf. Inês Filipa Rodrigues de Magalhães «Implicações constitucionais, penais e processuais penais da intervenção de atores privados no âmbito da execução penal: A Reserva de Administração», Maria João Antunes et al. (eds.) Os novos atores da justiça penal, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 514-516.

(51) Prescrevendo esse preceito que o internamento «depende de autorização do diretor-geral dos Serviços Prisionais, salvo urgência médica, caso em que o diretor do estabelecimento prisional determina o internamento, comunicando-o de imediato ao diretor-geral». Vd., ainda, o artigo 59.º do RGEP sobre Prestação de cuidados de saúde e internamento no exterior.

(52) Refira-se que o artigo 31.º, n.º 3, do ESNS, na redação originária, prescreve: «Sem prejuízo da celebração de acordos específicos, a entidade gestora pode faturar, nos mesmos termos das outras instituições ou serviços do SNS, a entidades públicas ou privadas responsáveis legal ou contratualmente pelo pagamento de cuidados de saúde, nomeadamente subsistemas de saúde ou entidades seguradoras.» O artigo 31.º do ESNS foi objeto de uma revogação parcial pelo artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 185/2002: «É revogado o disposto nos artigos 28.º a 31.º do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro, na parte referente ao contrato de gestão.»

(53) Compreendendo-se, à luz dessa coordenada base, a necessidade de o internamento hospitalar não prisional de reclusos ter de ser, como já se assinalou, autorizado pelos responsáveis dos serviços prisionais.

(54) «Os internados são sujeitos a acompanhamento médico permanente, desde o momento do ingresso.»

(55) «A aplicação de meios especiais de segurança é determinada pelo diretor do estabelecimento prisional, sob proposta e orientação do médico, salvo se se tratar de situação de perigo iminente.»

(56) Cujos encargos devem ser assegurados pelo SNS tanto ao utente em liberdade como ao recluso.

(57) Nos termos do artigo 2.º, alínea y), da LODGRSP compete a essa Direção-Geral «Conceder, pontualmente, apoio socioeconómico aos destinatários da atividade exercida pela DGRSP, na medida dos meios disponíveis, supletivamente ao prestado por outras entidades públicas responsáveis e pressupondo a participação responsável do indivíduo». Incumbe, ainda, à mesma entidade nos termos da alínea g): «Promover a dignificação e humanização das condições de vida nos centros educativos e estabelecimentos prisionais, visando a reinserção social, designadamente através da prestação de cuidados de saúde […]».

(58) Como se destacou (supra § II.3.1). O tema da consulta não incide sobre a repartição de competências entre o Tribunal de Execução de Penas e os serviços prisionais, sendo, assim, independente de alguns nódulos problemáticos que subsistem sobre o âmbito da reserva jurisdicional constitucionalmente imposta, revelados nas fundamentações da maioria e dos votos de vencidos no Acórdão n.º 427/2009 do Tribunal Constitucional sobre a colocação do recluso em regime aberto no exterior no quadro do CEPMLP e respetiva conformidade constitucional. Também se apresenta estranho ao objeto do presente parecer o papel procedimental atribuído ao Ministério Público nessa sede. Posicionamento revelador, de qualquer modo, do protagonismo dos serviços prisionais. Com efeito, o Ministério Público encontra-se no CEPMPL destituído de qualquer poder de decisão próprio e na parte em que é destinatário das comunicações da administração penitenciária fica ética e juridicamente comprometido num conjunto de decisões materiais dos serviços prisionais, apesar de não ter qualquer participação decisória apenas podendo recorrer em termos similares aos do contencioso administrativo dessas decisões para o juiz do Tribunal de Execução de Penas. Com efeito, no CEPMPL optou-se por «posicionar» o Ministério Público no procedimento de «impugnação» «das decisões da administração penitenciária que lhe devem ser comunicadas para esse efeito» «que considere ilegais» «perante o Tribunal de Execução das Penas» como entidade com a competência limitada à impugnação judicial de atos administrativos sem qualquer poder próprio. Sistema particular em que, ao contrário do que é anunciado na exposição de motivos da proposta de lei n.º 252/X, o próprio juiz do Tribunal de Execução de Penas assume, relativamente a alguns aspetos, um tipo de configuração procedimental atípico e distante do modelo processual penal pois, embora não seja um tribunal que vai dirimir conflitos de estrita legalidade administrativa, ou ações do MP contra decisões de entes administrativos, acaba por em vários casos só poder intervir por impulso do Ministério Público, por seu turno convertido em mera entidade com a possibilidade de impugnação judicial de decisões dos serviços prisionais. Com efeito, na exposição de motivos da proposta de lei n.º 252/X era colocada a ênfase na ideia de que a matéria da execução de penas e medidas de segurança privativas da liberdade não deve ser regulada «pelo direito administrativo» e que se está «perante um litígio inequivocamente disciplinado pelo setor do Direito Criminal relativo à execução das penas e medidas privativas da liberdade» revelando a rejeição de um modelo clínico. Embora exista um vasto campo de decisões sem intervenção judicial as mesmas são atribuídas aos serviços prisionais enquanto entidade com poderes de definição do regime de execução em face das finalidades estabelecidas na lei, artigo 2.º, n.º 1, e 135.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL.

(59) Nos termos do disposto pelo artigo 126.º, n.º 5, do CEPMPL

(60) Pelo artigo 126.º, n.º 2, do CEPMPL.

Este parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 2 de março de 2017.

Maria Joana Raposo Marques Vidal – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita (Relator) – Eduardo André Folque da Costa Ferreira – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Fernando Bento – Maria Manuela Flores Ferreira – João Eduardo Cura Mariano Esteves – Maria Isabel Fernandes da Costa – Vinício Augusto Pereira Ribeiro – Francisco José Pinto dos Santos – Amélia Maria Madeira Cordeiro.

Este parecer foi homologado por Despacho de 28 de abril de 2017, de Sua Excelência a Ministra da Justiça e Despacho de 12 de junho de 2017, de Sua Excelência o Ministro da Saúde.

Está conforme.

Lisboa, 1 de agosto de 2017. – O Secretário da Procuradoria-Geral da República, Carlos Adérito da Silva Teixeira.»

Parecer da Procuradoria-Geral da República Sobre o Acordo celebrado em 21 de novembro de 2014 entre o Estado Português e a indústria Farmacêutica

Parecer da Procuradoria-Geral da República Sobre o Contrato de Comparticipação Relativo aos Medicamentos para a Hepatite C

Veja todas as relacionadas em: